Por Lígia Krás
Depois de dois anos sem poder viajar em função de uma terrível pandemia, na primeira oportunidade que tivesse, você escolheria para visitar a cidade mais chuvosa da Europa? Eu escolhi e me apaixonei por Bergen, na Noruega. Acostumada a ver Bergen em revistas e programas na televisão retratada como uma cidade de turismo de navio, por seus lindíssimos fiordes e paisagens naturais, conheci um outro lado da cidade que me encantou.
Tudo começou quando vi uma foto nas redes sociais do conceituado fotógrafo norueguês Paal Audestad. Entre seu trabalho que abrange uma longa carreira fotografando shows, artistas e a cena musical na Noruega, e mais recentemente, várias idas à Ucrânia em plena guerra, Audestad tem uma característica marcante que são suas fotos em preto e branco. Uma, em especial, a que ilustra essa matéria, me encantou. Ao ceder a imagem para matéria, ele brincou que com tantas fotos feitas com boas câmeras e preparo técnico, fui escolher justo uma que ele fez ao acaso de seu celular em uma manhã de chuva em Bergen. E fez todo o sentido: Era assim que eu queria viver, sentir e entender essa cidade: sem técnica, sem sofisticação e sem artifícios. Como sou uma UX Researcher, meu foco sempre está na experiência completa e maximizada, então quando viajo procuro sempre estar em uma cidade em que algo esteja acontecendo. Escolhi então, a época do mais conhecido festival de música na cidade, o Bergenfest, para visitar a costa oeste da Noruega.
Todo o imaginário que eu tinha de cidade turística clichê ficou para trás assim que cheguei em Bryggen, área da cidade que teve grande importância durante a Liga Hanseática e é Patrimônio Mundial da Humanidade. Havia muitos turistas sim, mas a cidade tem uma energia muito peculiar: de um lado o colorido das “casinhas” e do outro a orla que é uma graça; ao mesmo tempo que parece pequena e acolhedora, é cheia de história pois foi um dia o Cais em que comerciantes iam e vinham, no conhecido período da Idade Média. Hoje essas casas históricas abrigam lojinhas fofas de souvenirs, museus, hotéis, bares e restaurantes.
A primeira coisa que comprei em Bergen foi um guarda-chuva. E isso me fez sorrir. Eu queria viver a cidade em sua essência, como ela é, e assim aconteceu.No primeiro dia do Bergenfest, observei como as pessoas locais se vestiam:Era início de verão, mas a maioria do público estava lá com produções super adequadas para dias chuvosos. Esqueça a ideia de capas de chuva de plástico transparente e sem graça. A cidade de Bergen é preparada para a chuva com muito foco em design, arte e conforto/segurança. É uma verdadeira Rainy Fashion Week. Mais que isso, uma Rainy Experience Week. Um exemplo é a marca Norwegian Rain, que está cada vez mais em destaque nas principais semanas de moda e revistas de moda do mundo todo. Seus designers T-Michael e Alexander Helle desenvolveram casacos impermeáveis com alta tecnologia e design numa união do tech japonês e muita identidade local, que são queridinhos muito além de Bergen.
O sol da meia-noite
Além disso, conforme você caminha pela cidade vai vendo tantas cores, modelagens, materiais em trench coats e capas impermeáveis, que é impossível sair dali sem comprar uma – exatamente a minha segunda compra na viagem. Aliás, foi o que me salvou no meu segundo dia de festival, quando até a banda norueguesa a-Ha mencionou que tocaria uma música para Bergen (“Here I stand the face the rain”) já que naquele momento chovia mas todo mundo estava com botas, sapatos e casacos adequados. Uma dica de viagem que funciona muito nesse caso é: não compre antes, em Bergen as roupas e sapatos são feitas exatamente por quem conhece as necessidades locais. E curti meus shows sem preocupação nenhuma, sequinha e confortável.
Um outro efeito maravilhoso da chuva na cidade no verão é que à meia-noite a chuva já não está mais lá e o sol brilha queimando, o que reflete na orla molhada, nos barcos… A atmosfera pós-chuva e pré-sol da meia-noite em Bergen são indescritíveis, é realmente poético. Você pode se sentar em uma das mesas na rua em frente à orla e beber algo olhando o movimento das gaivotas, pode caminhar se perdendo pelas ruazinhas estreitas com casinhas de madeiras dignas de conto de fadas. Essa era a sensação que eu tinha nessa cidade, de estar em algum lugar que já haviam me contado que existia, que me trazia um sentimento bom, de simplicidade e encanto. Isso talvez explique porque o cantor Sondre Lerche, uma das principais atrações norueguesas do Bergenfest (com uma performance que empolgou e foi ovacionado pelo público), tenha escolhido sua cidade natal para ficar durante a pandemia.
Avatars of Love
Lerche morou muito tempo em Nova York e estava vivendo em Los Angeles há dois anos quando surgiu a pandemia. Ele então “voltou para casa” e foi lá que veio grande parte de sua inspiração para compor seu último e um dos mais elogiados álbuns, “Avatars of Love”. Entrevistei Lerche no hall do meu hotel em Bryggen em uma manhã de muita chuva. Na verdade foi o momento em que mais choveu durante os quatro dias que estive na cidade. Ele, que é fã declarado de música brasileira, já tocou no Popload Festival em São Paulo e ama o Brasil (onde deve se apresentar em 2023), contou-me que minha música favorita de sua autoria, “Why Did I Write The Book Of Love”, do álbum Patience, foi inspirada em música brasileira: Gilberto Gil, Caetano, Chico Buarque e bossa nova, e gravada em Bergen pertinho de onde estávamos.
“Vivi em Bergen até os 22 anos de idade. Então, sim, escrevi quase todas as minhas canções aqui, cresci aqui. Na capa do meu último disco você consegue ver um pouco da cidade. Para o artista que fez a capa, eu dei fotos de Bergen para desenhar para a arte, então é uma mistura de Bergen com Los Angeles. E é isso, para mim, pois esses são os ‘Avatars of Love’. Foi a primeira vez que realmente descobri que estava escrevendo canções que, para mim, se situam em um lugar muito específico e que esse lugar é cenário para muitas dessas canções, como ‘Dead Of The Night’ e ‘We Will Ever Comprehend’, que é com o artista brasileiro Rodrigo Alarcon. Para muitas das canções, a locação é Bergen, e então, sim, se você quiser canções que estão conectadas com Bergen, eu diria que esse é meu álbum mais Bergen de todos”, confessou na entrevista.
Catarse na Escandinávia
Sobre o Bergenfest, vale a pena destacar que é um Festival extremamente bem organizado, de fácil acesso, e, apesar de anualmente ter grandes atrações internacionais em seu portfólio, tem uma característica intimista, de proximidade do palco e um público tranquilo – é como ver um grande show em uma área particular e a configuração especial do lugar talvez ajude: O Bergenfest é realizado dentro de um local histórico em Bryggen, o Bergenhus Fortress, uma fortaleza medieval que era simplesmente a sede dos governantes da Noruega quando Bergen foi a capital do país, no século 13. No local, pelo menos seis reis estão sepultados! Perto dali, no Museu de Bryggen, está a maior coleção do mundo de inscrições rúnicas medievais, uma atração e tanto para quem se interessa por Runas, Vikings e toda a mitologia e história nórdica.
No meu último passeio pela cidade, visitei um lugar que sigo há muito tempo no Instagram, a loja do Hanseatic Museum, é uma lojinha cheia de objetos com referência histórica ao universo marítimo. Esse museu está em reforma e fui convidada desde já para comparecer em sua reabertura em 2024. Na última ruazinha que explorei, com suas casinhas de madeira branca, parei em frente a uma vitrine de uma pequena galeria onde estava exposto um cartão simples, feito à mão e que me fez encher os olhos de lágrimas e lembrar lá da da foto do início dessa matéria e o que havia me levado até essa cidade única e cheia de identidade, arte, música, design, história, eventos, lendas e encanto.
Diferentemente daqueles programas inacessíveis e todos iguais “a terra dos fiordes”, Bergen é muito mais que isso. Ao escrever sobre esta relíquia geográfica da Escandinávia, pensei que é sobre como você pode estar em qualquer cidade e sua perspectiva sobre ela. É como seus olhos se movem sobre a cidade, ou sobre como você resolve inesperadamente que não vai entrar nessa rua e vai virar naquela outra, e se perde em ruas que nunca entrou antes e que não sabe se um dia entrará de novo na vida.
E aí vem a necessidade imediata de captar todos os elementos possíveis daquele lugar, pois você vai querer lembrar dele, do cheiro, da cor, de como as pessoas se moviam ou de como o silêncio permitia só ouvir a chuva e o vento. Experiência é isso. Cortar o caminho em uma rua nunca antes observada, seja no Brasil, na Noruega, na França ou no Uruguai. Na capital ou no interior. Faça esse exercício de catarse uma vez na vida. Vale a pena.