
Denise Fraga – Foto: Cacá Bernardes
Superpoderes são normalmente ligados a habilidades sobre-humanas, que nossa espécie não é capaz de atingir. Mas existe um tipo de superpoder que é alcançado justamente ao mergulhar fundo até estar cara a cara com o cerne da humanidade. Denise Fraga fez esse caminho, e agora tem esse poder, que é a capacidade de fazer as pessoas se sentirem vistas.
Em sua peça “Eu de Você”, que fica em cartaz até este domingo (28.08) no Teatro Prudential, no Rio de Janeiro, a atriz consegue fazer cada um da plateia se sentir reconhecido na comunhão da experiência humana, sem esquecer de todas as injustiças que fazem a trajetória de alguns ser mais difícil do que a dos outros.
É como se ela tivesse conseguido encapsular os sentimentos humanos mais puros – o que inclui não só os mais bonitos, mas também os mais complicados de aceitar – e entregá-los em uma performance tocante, surpreendente, divertida, e que cumpre o propósito de Denise com sua arte. “As coisas que eu faço não precisam ter um final feliz, mas precisam dar vontade de viver, e não só sobreviver.”
Ao entender o lugar fronteiriço entre o riso e o choro, ela preenche o que outra pessoa elaborou como a missão da arte. “A arte deve confortar os perturbados e perturbar os confortáveis”, frase atribuída a Banksy. Essa ideia está presente em todos os seus trabalhos, como na comédia “45 do Segundo Tempo”, de Luiz Villaça, que está em cartaz nos cinemas e ainda traz no elenco nomes como Tony Ramos, Ary França, Cássio Gabus Mendes e Louise Cardoso.
Em entrevista à Bazaar, ela fala sobre como as redes sociais fragmentaram a atenção das pessoas, o poder do humor, a potência transformadora da arte e os caminhos possíveis para exercer a gentileza em um mundo desproporcionalmente cruel para alguns. “Tento fazer a pessoa sair do teatro com assunto para o jantar. E de alguma maneira eu acredito que essa pessoa possa chegar diferente no escritório na segunda-feira.”

Denise Fraga na peça “Eu de Você”, em cartaz no Teatro Prudential, no Rio de Janeiro – Foto: Cacá Bernardes
A peça “Eu de você” fala da relação entre “eu” e “outro”, estando o “outro” nesse papel de um artista que transforma sentimentos universais em algo bonito. De onde surgiu essa percepção?
Tudo começou quando a gente colocou um vídeo na internet e um anúncio no jornal pedindo histórias das pessoas. A gente falava: “Quero subir no palco para contar sua história, calçar seus sapatos, trilhar o que você trilhou, quero olhar pelo seu olhar, ser eu de você”. Selecionamos 25 das 300 cartas e depoimentos transcritos que recebemos. A ideia era a gente trançar esses pedaços de vida com trechos da literatura, da música, mas fazer um espetáculo divertido. é como se o público tivesse nos dado aquelas histórias e a gente com a arte embrulha elas para presente na beleza na poesia e devolve. Uma pessoa que tem contato com a arte no mínimo sofre mais bonito porque ela sofre acompanhada dos poetas, ela sofre acompanhada da beleza. A peça faz a pessoa que está prestes a derramar uma lágrima dar uma gargalhada e a pessoa que tá rindo dar aquela parada na risada para falar: “Nossa, pior que a gente faz isso, a gente é assim, isso acontece”. Essa risada do reconhecimento do pertencimento à humanidade.
Aquela frase que a arte deve perturbar quem está confortável e confortar quem está perturbado?
Eu tenho essa frase anotada no meu painel. “A arte deve confortar os inconformados e perturbar os conformados.”
Como foi para você inserir o riso nisso?
Eu acho que o humor para a gente virou mais do que uma técnica, mas uma filosofia. Eu quando estou triste continuo bem humorada. Eu sou capaz de fazer uma piada chorando. É como se a gente tivesse feito um ritual. A Maitê Proença disse: “É muito interessante você sair de uma peça que você não sabe direito o que é, mas você fica completamente mexido”. A peça dá vontade de viver, de estar no jogo da vida.
Mexe com dois momentos opostos que são muito o cerne do ser humano, o riso e o choro.
Quando eles se juntam na mesma hora, eu acho tão precioso esse lugar. tem sido meu lugar preferido, esse lugar fronteiriço entre a comédia e o drama ou entre a emoção e o humor.
Como foi para você ser atravessada até pessoalmente por essas histórias?
Eu fiquei muito responsabilizada, não sabia como fazer jus à confiança que essas pessoas tinham depositado em mim para contar suas histórias. A gente chamou duas pessoas que tinham compartilhado suas histórias para verem os ensaios. Uma delas, que tem uma história de abuso doméstico, chorou muito quando terminou. Eu chorava junto e perguntei como ele se sentia. Ele disse: “Livre”. Ele concretizou para mim uma coisa que eu sempre pensei a respeito da arte, que ela serve para libertar a gente da própria vida, dessa mediocridade cotidiana. Imagina a gente na pandemia sem arte, sem essa possibilidade de enlevo.
A arte – principalmente a composição, a poesia – às vezes acontece de uma perspectiva muito individual. O artista expõe as suas próprias dores e alegrias. Como você acha que os artistas hoje podem inserir o olhar do outro nas obras sem se apropriar das vivências das outras pessoas? Acho que você aponta o caminho ao fazer uma peça a partir da colaboração com outros que quiseram ter suas histórias contadas por você no palco.
O espetáculo talvez seja o jogo de provocação disso. De você tentar incluir. Tem um jogo muito interessante com a plateia, não é um espetáculo interativo, não arrasto ninguém para o palco, mas é um espetáculo que promove um jogo de você tentar colocar seu olhar sobre algo como um artista, colocar seu olhar sobre a experiência humana, o olhar de fora. O próprio título tem este chamado: vem ser eu de você, deixa eu ser eu de você e venha ser eu de você. E tem isso de fazer a plateia entender o que é esse lugar de fala.

Na peça, ela está sozinha no palco com uma banda só de mulheres – Foto: Denise Fraga
Por que é importante ter uma banda só de mulheres neste espetáculo? Qual sua relação com o feminismo?
Eu acho que a gente tem que fazer a nossa parte, pensar nisso na hora de formarmos equipes. Quando for contratar alguém pensar nas diferentes lutas, como feminismo e antirracismo. Colocar as mulheres numa situação de poder, em postos de comando. É sobre entender a sua gota no oceano de transformação.
Além da banda, você está sozinha no palco nesse espetáculo. Você se sente sozinha? Como artista, seja em cima ou fora do palco, existe espaço para se sentir sozinha?
Não muito. A peça tem um jogo com a plateia. Uma das coisas que mais me fez ter aversão a estar sozinha é que eu adoro contracenar. Estar sozinha no palco era meio impensável. mas quando a peça surgiu nesse formato – e eu acho que eu tenha ate provocado esse formato – criou-se algo surpreendente com a plateia. Eu sugiro companhia, eu desço na plateia, olho nos olhos das pessoas, falo muito perto delas. É uma felicidade porque eu estou sozinha e não me sinto sozinha. Mas acho que a gente tem que ficar buscando muito essa solidão, acho que ela nutre muito.
A arte precisa de tempo. As reflexões que ela desperta exigem tempo. Ainda que seja leve, existe uma profundidade. Como você vê esse espaço daqui para frente, em uma sociedade cada vez mais acelerada?
Eu não paro de pensar nisso. Me sinto um aparelho 110 volts ligado no 220 nessa velocidade que foi impingida na vida. Mas tem uma coisa potente acontecendo com a peça. As pessoas andam muito angustiadas, mas com pouco repertório para dar palavras para essa angústia. Escrevem e leem o dia inteiro na rede social, mas não mergulham mais, o nado é rasteiro. Esse mergulho provocado pelo teatro com a literatura está cada vez mais difícil, as pessoas estão com a atenção estilhaçada. Então esse lugar que você pode esquecer do corpo tem sido cada vez mais poderoso. Talvez seja por isso que a reação das pessoas à peça tem sido tão potente.
Existiu um momento em que você decidiu que sua arte deveria despertar reflexões mais profundas ou isso aconteceu naturalmente?
O divisor de águas foi ler a peça “A alma boa de Setsuan”, de Brecht. Fiquei sete anos sem fazer teatro. Quando voltei, descobri que queria dizer coisas, não queria só fazer uma peça legal, só um bom personagem. Quando eu li [a peça de Brecht], foi fundamental. Resgatou o poder da gentileza e o quanto eu acredito nele. Brecht tem uma máxima que é: divertir para comunicar. Acredito muito nisso toda vez que eu consigo divertir alguém ao mesmo tempo que faço entrar em estado de reflexão, fico feliz. Fazer a pessoa sair do teatro com assunto para o jantar. E de alguma maneira eu acredito que essa pessoa possa chegar diferente no escritório na segunda-feira. As coisas que eu faço não precisam ter um final feliz, mas precisam dar vontade de viver. Nesse momento, viver está sendo sobreviver. A indignação com isso talvez seja um grande ingrediente para o meu trabalho.