Elas são amigas há mais de 25 anos. Ambas são formadas em publicidade e propaganda e assinam o roteiro da série de sucesso “Encantado’s”, do Globoplay. Renata Andrade, 41 anos, é de Oswaldo Cruz, subúrbio do Rio de Janeiro, mas mora em Botafogo. Thais Pontes, 40, nasceu no Centro do Rio, e mora no Flamengo. “Sempre tivemos muita coisa em comum, o jeito de olhar a vida, adolescentes que gostavam de ir ao teatro, nós passávamos horas e horas comentando novelas ao telefone, bem antes das redes sociais”, diz Thais. “Nós éramos aquelas adolescentes esquisitas que preferiam ficar em casa assistindo televisão a sair”, completa Renata.
E esse amor pelo teatro e pela TV foi o pontapé inicial para que ambas se tornassem roteiristas. Elas sempre tiveram um olhar diferente para o mundo, como se andassem cercadas de personagens, e gostavam disso. Como diz Renata, a ideia era ver o lado torto das imagens, das pessoas, não aquilo que elas mostravam. “Eu sempre contei essas histórias, da família, do transporte público. Eu costumo dizer que pessoas comuns são sempre as mais interessantes. O cara que está sentado do meu lado no ônibus, ele tem muita história para contar.”
Com o início das redes sociais, Renata começou a produzir crônicas sobre as coisas que observava, foi o canal de partida de divulgação de seu trabalho como contadora de histórias. Lançou até um livro, chamado “A Passageira ao Lado e Outras Crônicas”, e sempre teve vontade de escrever para a TV, mas não conhecia ninguém que pudesse ajudá-la a entrar nesse meio. Começou a fazer curso de roteiro e acabou sendo indicada para um processo seletivo para roteiristas do humorístico “Zorra Total”, da TV Globo, e entrou de cara.
A história de Thais é muito parecida, porque elas trilharam quase os mesmo passos. “Eu era uma adolescente muito tímida, e extravasava meus sentimentos e pensamentos escrevendo em diários”, conta. Ela sempre gostou muito de escrever e de observar, como diz, preferia ver e ouvir a falar. A exemplo de Renata, Thais também usou as redes sociais para escrever e contar sobre seu dia a dia, o cotidiano, mas sempre com a pegada do humor. “Às vezes, acontecia uma coisa triste comigo, mas eu transformava aquilo em um post engraçado, como o dia em que fui atropelada por uma kombi dirigida por um assaltante. Eu era pessimista da dupla, a Renata sempre dizendo que ia acontecer, mas eu pensava que não conhecíamos ninguém, então como ia acontecer?” Ela, então, também partiu para os cursos de roteiro e, da mesma forma que Renata, foi indicada para a oficina de roteiros da Globo. E emplacou.
“Acho que o que define a minha escrita e a da Thais também é uma coisa que um amigo me disse: ‘Renata, eu gosto muito dos seus textos, mas eu acho que em alguns casos eles são muito autodepreciativos’. Mas não é que eram depreciativos, é que o mundo está acostumado a postar o bonito, o belo, o que dá certo, e nós escrevemos sobre coisas erradas com humor, como o atropelamento dela, por exemplo, nós vemos a graça das situações”, diz Renata.
Essa dupla de roteiristas atuou no “Zorra Total” e na “Escolinha do Professor Raimundo”, ambos da TV Globo. De lá para cá, a vida delas só foi crescendo e e o trabalho rendendo frutos e aparecendo. Até que surgiu a série “Encantado’s”, que elas assinam juntas, aliás o primeiro trabalho a que ambas se dedicam em parceria. Tudo começou quando elas foram para a oficina de roteiristas da Globo, cujo objetivo era acelerar o processo criação de roteiristas da casa. “Nós tivemos aula com pessoas incríveis, e era bom estar em um lugar em que você se reconhece, porque na maioria das vezes você conta nos dedos quantos negros estão lá. A gente entrava na sala e a maioria era negra”, reflete Thais. O processo final da oficina era criar um projeto, e elas criaram “Encantado’s”.
Tudo começou em uma mesa de bar, quando começaram a pensar sobre o que queriam falar no projeto. Elas decidiram que queriam se ver, falar delas mesmas. “De cara, a gente queria falar sobre supermercado, foi a primeira coisa que veio, por ser um lugar de circulação de gente de todo tipo, do que representa, nós queríamos falar sobre essas pessoas que estão trabalhando dentro de um supermercado”, explica Renata. Depois elas inseriram o samba no contexto da série. Mas e se colocassem o samba dentro do mercado? O que extrairiam disso? Elas entenderam que o caos que isso resultaria seria traduzido em humor. E começaram criar os personagens. “A gente acredita que os personagens de ‘Encantados’ são pessoas que existem, quem assistir vai se identificar ou identificar alguém que conhece ali”, contam.
Renata e Thais não só escreveram a série como participaram da escolha dos atores, ao lado de Antonio Prata e Chico Mattoso, que entraram dois anos depois que elas já haviam começado, além de Henrique Sauer, diretor artístico. “Como era a minha primeira série, eu ficava pilhada, tentando imaginar se eu saberia que a pessoa certa havia chegado, e foi uma coisa dos cinco, mesmo, nós assistíamos aos testes e quando a pessoa era a certa, a gente sabia”, diz Thais. Elas explicam que o elenco é um elenco de certezas, um encontro feliz, incrível. “Acho que um personagem que exemplifica bem essas escolhas é a Melissa, feita pela atriz Ramille, que na série é filha de Luís Miranda e Evelyn Castro. Porque nós havíamos tido certeza com todos os outros personagens, mas a Melissa a gente não chegava em um senso comum”, relata Renata.
Mas o teste de Ramille foi a gota d’água para a escolha, a moça convenceu de cara. E outra coisa, quando Renata e Thais, como duas mulheres negras, escreveram a série em 2018, falando de periferia, de pobreza, elas queriam que a série fosse predominantemente negra. “Nós sabemos que o audiovisual ainda não contempla tantos atores negros. Então, quando a gente fez a apresentação do elenco, metade negro, pensamos que seria difícil que bancassem uma série negra”, lembra Renata. “Quando o Henrique Sauer entrou no projeto, ele falou: ‘Que tal se fizéssemos uma série preta?’, e nós concordamos na hora”, completa.
Mas elas ainda tinham que apresentar o projeto para a Globo, preocupadas com quantos negros poderiam ter de sair da série. E diferentemente do que imaginavam, não perderam ninguém, a emissora abraçou o projeto e o elenco como estavam. Todos ficaram felizes, Prata, Mattoso, Sauer, mas elas, como duas escritoras pretas, ficaram ainda mais realizadas com o fato de a Globo aceitar o projeto tal qual fora criado, buscando a representatividade preta na tela. Ambas acham que a representatividade preta no audiovisual hoje é mais presente, mas que ainda tem uma forte tendência de tema. “Eu acho que sempre colocam a gente falando de dor, das nossa mazelas. Eu acho que isso infelizmente é uma realidade, mas nós não somos só isso. Acho que ‘Encantado’s’ tem essa pegada. É mostrar o negro vivendo, trabalhando, se divertindo, tendo família”, comenta Thais. “No ‘Encantado’s’ não tem arma na mão, não tem sangue jorrando… É uma maneira de mostrar que a gente é muito melhor feliz, e que somos diversos. Temos 17 personagens, e 4 são brancos.”
Há milhares de roteiristas pretos no Brasil que não são conhecidos. E o trabalho de Renata e Thais é uma forma de mostrar que existe, sim, os talentosos, mas eles precisam ter oportunidades, como a que elas experimentaram. “Não sei se não tivesse acontecido a oficina, se eu não estaria trabalhando na joalheria em que atuava na área de marketing, e se a Renata não estaria em seu antigo emprego. Então, eu acho que a gente precisa de oportunidade, e a gente precisa da caneta na mão, precisamos ter o poder de decisão”, conta Thais. “E quando se fala em oportunidade, uma coisa importante a se falar é que dar oportunidade sabendo que somos um País de maioria negra que não tem acesso a formação. A importância dessa oficina de roteiros é que ela entende que precisa capacitar pessoas negras. Recentemente eu percebi que muitas pessoas me procuravam pedindo indicação de roteiristas negros, principalmente mulheres, roteiristas negras. E eu, graças a Deus, tinha indicações para dar, mas muitos já estava trabalhando. O que quero dizer é que não adianta pôr uma pessoa negra na sala apenas para cumprir o status, será que essa pessoa negra tem a bagagem cultural e a formação excelente que um branco da zona Sul teve? Então prepare essa pessoa, dê a oportunidade de ela sobressair e mostrar a que veio”, completa Renata. “A oficina foi uma oportunidade ótima, de onde nasceu ‘Encantado’s’, mas não pode ser a única, tem de haver formação. Para fazer valer a diversidade e a representatividade precisa capacitar os talentos negros”, completa. “E também precisamos dizer que não tem o que falar só sobre isso, não temos que chamar negros apenas para falar de negritude, porque isso ainda é uma tendência, chamar os negros para ter o número lá, e também para falar sobre aquele assunto. O ‘Encantado’s’ a gente fala sobre questões raciais, mas não só isso, e eu e Renata queremos ter projetos que falem de outras coisas. Nós não estamos atreladas somente à questão racial.”
Mesmo estando na Globo, elas são sondadas por outras plataformas, o que mostra que o setor de streaming evolui para os roteiristas. Renata acredita que há mais canais para o trabalho com o crescimento das plataformas, segundo ela há um leque de oportunidades maior, assim como o fato de poder trabalhar à distância. “Eu acho que o streaming ainda é uma bolha, mas é um mercado que está crescendo bastante e que esta entendendo como pode ser plural. A gente vê a Netflix investindo mais em série de humor, o que não era um padrão, a Globo investindo também em série de humor, e isso é muito bom, não só na frente das telas, onde se vê muitas caras novas, como por trás delas, onde estão os roteiristas, a equipe”, diz Thais.
Sobre a receptividade de “Encantado’s” ambas são diretas: está sendo ótimo, tanto dos familiares e amigos, como de pessoas que se manifestam pelas redes sociais. Segundo elas, uma coisa unânime é o fatos de as pessoas estarem gostando do elenco, de todos. No momento, Renata e Thais estão trabalhando na segunda temporada, escrevendo e criando as situações. Aliás, a segunda temporada foi encomendada enquanto gravavam a primeira, isso é uma resposta e tanto do resultado do trabalho da dupla.
Para o futuro, elas estão com desejo de fazer mais e mais temporadas e também escrever para novela. “A gente quer muito escrever novela, a nossa vontade é transformar essa dupla em autoras de novelas, e quando ‘Encantado’s’ acabar, daqui uns 15 anos (risos), a gente quer muito apresentar uma sinopse”, finaliza Thais.
A verdade é que elas vão longe, e poderemos ver o trabalho de Renata e Thais não só no streaming, mas nos palcos e na telona, sim, elas também têm planos de fazer um longa-metragem. Que venham!