Redcar é o codinome de Chris, vocalista da banda Christine and The Queens. Olho no olho, o artista francês soa mais tímido do que nos palcos, quando encarna uma persona de verve xamanística em um espetáculo com a mistura de luz e poesia. Espécie de culto foi sentido na performance para lá de teatral – herança de sua formação como diretor de palco – com direito a asas de anjo em sua passagem pelo estreante C6 Fest (festival de música), em maio, no eixo Rio-SP.
Nesta sexta-feira (09.06), ele lançou o terceiro álbum “Paranoïa, Angels, True Love”, com vinte faixas, dividido em três prólogos. O primeiro é mais denso, o segundo propõe abrir um diálogo sobre feridas do passado e o terceiro escancara seu coração rumo à cura. “Quando estava compondo, parecia unir as peças de um quebra-cabeça”, resume.
O novo trabalho chega depois de perdas significativas em sua vida, como o término de um relacionamento e a morte inesperada da mãe, passagem que o fez cancelar o show no Coachella de 2019 – e, atravessada a pandemia, só pôde tirar essa pendência da agenda neste ano. “Essas faixas estão retroalimentando a minha insanidade”, resume o jovem contido, de 34 anos, criado na igreja.
A ideia do projeto surgiu, ainda na França, quando se preparava para conduzir o sucessor de “Chris” (2018). Foram oito meses antes das sessões de estúdio quando, então, desembarcou com alguns esboços na mala, em Los Angeles, onde condensou tudo – ao lado do lendário Mike Dean, com quem já havia trabalhado no EP “Redcar les adorables étoiles (prologue)”, de 2022. “Comecei a me isolar, fiquei viciado na prática da oração, trabalhando por horas. Muitas canções falam por si só e anunciam: está vindo, e será uma lição a cada play”.
“We Have to Be Friends” era uma dessas bem “severas”, quando questionava seu subconsciente: “não estava em possessão de mim mesmo. Acho que os anjos estão chegando”, ri. Por falar neles, outra faixa angelical é “I Met an Angel” (conheci um anjo, em português). “Queria ser salvo pela música. Sempre quis isso, mas dessa vez estava desesperançoso”, narra.
“Angels Are Crying in My Bed”, assim como a anterior, conta com a participação de Madonna, como também surge em “Lick the Light Out” – uma para cada fase. “Oferecer uma parceria foi o meu jeito de dizer o quanto a amo”, conta. A dança tem certa culpa nisso. “Meus dançarinos trabalharam com ela, ouvi histórias brilhantes do quão disciplinada é. Me convidou para alguns shows, sempre nos admiramos à distância. É uma poetisa, um anjo, verdadeiro ícone da cultura pop”. Madonna recebeu a demo, topou e, com “tamanha generosidade”, enviou as vozes. “Como um lorde britânico, encarnou no corpo de uma mulher para mudar os rumos do pop e se tornou rainha. Aqueles olhos azuis são a representação de uma alma sábia. É, genuinamente, a melhor pessoa porque está interessada na vida.”
Curiosidade: todas as músicas foram gravadas em um só take, tendo início às 8 da manhã – mesmo horário que começava a compor ao chegar à Cidade dos Anjos. “O Led Zeppelin fazia isso, e queria tocar o invisível, sentir a humildade e me provar como artista porque vivemos tempos difíceis”, filosofa. Crente de que sua obra é um jeito de se desnudar, este disco é a forma de se consolidar e voltar a sorrir em um caminho de redenção. “Preciso de amigos, não tenho muitos. Quando tenho, abro meu coração”.
O feedback dos fãs é de encorajamento: às vezes interessados sobre sua vivência, ora amor – algumas vezes, delírios, por que, não? A conversa começa pela música, passa por identidade de gênero. E não poderia ser diferente: seu corpo, assim como tudo, é político. Sabendo que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, discorre sobre o “carma pesado” da população LGBTQIAPN+. “A única coisa que não nos foi tirada é a alegria de nos sentirmos livres por quem somos”.
Trabalhar o perdão é algo que tem dado certo para este devoto de São Benedito. Não é fácil, conta, dizendo passar dias com vontade de chorar. E, agora, narra sua própria perspectiva como homem trans (ele falou sobre o assunto, pela primeira vez, no ano passado). Empatia, amizade e fraternidade são seus lemas. “Mesmo que tentem me desestimular (com o olho marejado, desculpa-se). Sinto-me desencorajado algumas manhãs, batalhando para ser um artista melhor e alguém mais dócil. Comer, amar, viver todos os dias – para nós – já é uma benção”.
Sabe que é inspiração para outras pessoas, mas mesmo assim faz questão de não se enganar. “Tiram o nosso orgulho por conta do capitalismo, e nos colocam um alvo quando querem punir alguém por coisas com as quais não podem lidar. Seja forte, sejam fortes”, aconselha.