
Rafaella Caniello e a modelo Daiane Conterato no desfile da Neriage (Foto: Divulgação/Zé Takahashi)
A última vez em que a moda se reuniu em frente à histórica Estação da Luz, em São Paulo, foi para o último desfile da Misci, em junho, na Pinacoteca Contemporânea. Dois meses mais tarde, foi a vez da Neriage, outra etiqueta favorita em terras tupiniquins, juntar no endereço “nata à la mode”, como um dos convidados falou, entre risadas.
Ali, dentro das galerias fotogênicas da Pinacoteca, as obras de arte deram espaço para as dezenas dos convidados que entraram com todos os tipos de rótulos: editores, jornalistas, assessores, celebridades, influenciadores, artistas, mundanos… alguns sequer brasileiros. Quem desfilou mesmo, claro, foram as modelos (incluindo a it-girl noturna Marina Dias), mas a arena já exalava estilo antes mesmo do desfile começar.
Na realidade, o perfume é forte há meses, desde quando a diretora criativa Rafaella Caniello contou, aqui e ali, que a inspiração para seu desfile seguinte, “Cartas para Ítaca”, passava intimamente pela obra do artista brasileiro José Leonilson (1957 – 1993), em um flerte sincero com o poema “Ítaca”, do poeta grego Konstantinos Kafávis (1863 – 1933). A obra de J.L. é extensa: desde sua morte há três décadas, são mais de 3.500 catalogadas com as quais, pela permissão inédita da família, Rafaella pode brincar e desenvolver seu imaginário na construção da coleção – uma tarefa que ela mesma descreveu como “pretenciosa”.
Para quem acompanhou de fora, talvez o adjetivo mais apropriado seja “ambiciosa”. Tudo prometeu ser grandioso. E foi. A locação, a lista de convidados, a trilha sonora e até as referências para as criações, escolhidas entre as obras menos conhecidas de Leonilson dos anos 1970 a 1990. Na passarela, o repertório não chegou literal. Para a estilista, a intenção era evocar a fragilidade e intimidade que ela mesma sentiu quando entrou em contato pela primeira vez com o trabalho do artista. Esse sentimento, aqui, se traduziu em bordados, estampas em seda pura, jacquards e os plissados e texturas que são assinaturas da Neriage.
A narrativa era organizada e se dividiu em três momentos, descritos como “pérolas, andarilhos e âncoras”. No primeiro, a fluidez protagonizou ao lado de bordados com frases de autores diversos, como em um diário ambulante, enquanto, na segunda, a alfaiataria e as transparências tomaram a passarela. Tudo era artsy, sim, mas com a leveza que curou a “pretensão” discutida por Rafaella. O terceiro bloco, um pouco mais filosófico, materializou o “retorno às origens” em tons terrosos – mais uma ode ao poema de Kafávis sobre a viagem odisseica de Ulisses para sua casa em Ítaca.
Com botões vintage, modelagens versáteis e peças criadas com mais de trinta encaixes, tirar os olhos do que desfilou era arriscar perder um momento sedutor na moda brasileira e deixar passar a resposta para uma das questões que mais assombram a modernidade: moda é arte? Para quem ousou virar os olhos por alguns segundos e olhar a plateia, as pistas estavam lá.
Lado a lado, no chão, dois pares de calçados contrastaram em tudo: botas azuis em couro de pirarucu e sapatos sociais envernizados com meias-soquete esportivas. Eram de Airon Martin e Thai de Melo Bufrem. Naqueles quatro pés agitados, havia arte.
Em outro plano, mais amplo, uma assimetria provocadora contrastou a modernista “Musa Impassível”, de Victor Brecheret, com o modernérrimo estilista Lucas Danuello. Ela, vestida em mármore carrara e com os cabelos para baixo. Ele, de alfaiataria menta-turquesa (criação autoral), meias verdes e cabelo para cima. Qual dos dois era a escultura, mesmo?
A performance artística, só viu quem olhou de perto: Ingrid Guimarães, de vestido vermelho e uma maxi-bolsa (Louis Vuitton x Yayoi Kusama), murmurando letras de Cazuza, a trilha final do desfile. E na saída, passando de fino, Cecília Gromann e Victor Reis, dupla que vive “fazendo arte” pela moda.
Afinal, moda é ou não é arte? Poderia ser. Ou pelo menos deveria. Quando parece, já não é mais. A arte da moda se esconde nos poucos segundos em que seus representantes, modelos, ícones e efígies posam sem querer posar. Na Neriage, houve arte em todos os cantos, aquela do tipo brasileira, com o ritmo que sai das telas para a vida real, cheia de ginga despretensiosa.