
O poder do desencanto: por que o segundo desfile de Daniel Lee na Burberry incomoda? (Fotos: Divulgação)
Na moda, algumas fórmulas são previsíveis e, às vezes, até mesmo inevitáveis. É o caso do último desfile da Burberry, em que a etiqueta britânica, destaque na fashion week de Londres, sob o comando do designer inglês Daniel Lee, não poderia ter tido um visual mais brit. Ou, melhor ainda, brit-chic. A locação do desfile já entregava a receita: uma tenda xadrez enorme – nos moldes militarizados que o próprio comandante Nelson teria aprovado – montada em Highbury Fields, o maior parque público de Islington, na capital inglesa.
O cenário do gramado, rodeado de casas vitorianas e georgianas, traz, como tudo na Inglaterra, uma fantasia nostálgica. Há muito da estética inglesa que dominou o paisagismo europeu em eras passadas, com a ideia de uma natureza anárquica, e um pouco do perfume liberdade rebelde que ganhou força com Bloomsbury Group – a gangue de poetas e artistas que revolucionou o intelectualismo há um século. Dentro da tenda, porém, a liberdade, rebeldia e anarquia de Lee foram tantas que qualquer expectativa que os convidados e espectadores tinham sobre o seu segundo desfile para a Burberry murcharam completamente.
O azul elétrico que foi protagonista na passarela do início do ano (e que ganhou até mesmo o apelido de ‘Burberry Blue’), esteve só em detalhes. “Nenhum full look… inacreditável!”, criticou um internauta nos comentários da transmissão ao vivo. De fato, o azul só figurou em peças individuais, detalhes em estampas e, com um pouco mais de presença, nas solas de sapatos masculinos. Ironicamente, ele ditou a comunicação da marca nessa temporada, em buquês de rosas azuis que os convidados receberam. Nas próprias redes sociais da marca, uma cereja, um morango e uma margarida ganharam o mesmo tratamento azulado. Na passarela, ao contrário, a cor vibrante que chamou a atenção foi o vermelho. Talvez fosse essa a ideia de natureza inusitada que Capability Brown e William Kent tinham em mente quando lançaram a tendência dos “English gardens”.
A comparação aqui é válida porque, alguns visuais criados pelo designer nessa estação (de primavera-verão 2024) vieram cobertos de flores, estampadas e bordadas, ao passo que outras (a grande maioria) eram paradoxalmente minimalistas. Uma das raízes da Burberry, o trench coat, foi revisitado com cortes quase neoplásticos, fugindo da interpretação clássica que o antigo diretor criativo, Riccardo Tisci, deu para a peça. Ainda assim, Lee apostou na tradicional “gabardine”, tecido lançado e popularizado pelo próprio Thomas Burberry como um material utilitário para soldados na guerra. Nessa mesma nota, a aposta do designer na paleta apagada de verdes militares parece explicada por essa referência – mas não foi a única.
Vestidos assimétricos lembraram muito os tempos românticos de Alber Elbaz na Lanvin, enquanto silhuetas retrô trouxeram à memória a cultura dos “mercados de pulga” que, já nos anos 1960, eram fortes na cena britânica. No visual geral da coleção, entretanto, faltou o senso de dramatismo pesado (cheio de cores, xadrezes e texturas) que lançou Daniel Lee nos holofotes da moda em 2023, depois de sua estreia na Burberry em fevereiro. Em seus novos designs, a quietude grita com toda a languidez do countryside britânico que ele mesmo subverteu em exageros na temporada passada.
O olhar do estilista para a marca ainda não é claro para o público e, se a paleta do desfile dá algum sinal, é de que o futuro é um pouco mais turvo do que se esperava. As certezas foram embora, tanto quanto os “patos” nas estampas da última estação, que não entraram nessa coleção e parecem já ter migrado para longe. Mas Daniel Lee acabou de pousar e ainda há muito para ver de seu trabalho. Sua capacidade de gerar surpresa, incômodo e até decepção (um repertório que ganhou em seus anos à frente da Bottega Veneta), só prova que é impossível ignorá-lo.
O fato é que o designer não vem para mimar fashionistas, e sim para provocar. No mundo de Lee, não há tempo para birras ou saudosismos incoerentes com o que foi desfilado há uma temporada. O ritmo é de galope, como no emblema da casa, e ele sabe o que faz. Não é, afinal, “prorsum” (em frente) o mote em latim da Burberry?