David Laloum nunca morou nem dormiu na casa que transformou o oásis brutalista de Paulo Mendes da Rocha, na Granja Julieta, em São Paulo, em residência artística. Paixão há décadas, a arte que era um hobby encontrou, enfim, seu lugar. “Agora faz parte da minha vida, do meu cotidiano. É todo dia”, reforça. No início deste ano, ele materializou o lar batizado de Domo Damo – “casa do amor”, em esperanto. “Quando os quartos ficaram prontos, já estavam chegando os primeiros artistas”, conta o colecionador.
A morada em questão recebe pessoas de diferentes partes para se dedicarem exclusivamente ao fazer artístico em uma parceria com Benjamin Trigano, fundador da galeria M+B, de Los Angeles, nos Estados Unidos. “A ideia é catalisar uma nova geração de artistas, principalmente do Brasil para o mundo. Daqui a 20 ou 30 anos, veremos um movimento histórico e, quem sabe, tenhamos contribuição humilde nesse movimento”.
Laloum buscava um lugar propício para artistas criarem, mas nunca teve a intenção de achar a assinatura de um grande arquiteto. Mas ela apareceu. “Como se, de certa maneira, sem saber, ela aguardasse um projeto como a Domo Damo”. Arquitetada por Mendes da Rocha, a casa foi encomendada pelo artista e galerista Gaetano Miano, na década de 1960. Ele e sua família moraram lá até 1968, quando voltaram a Roma para escapar da ditadura militar. “Não sinto nenhuma brutalidade nela. Sinto verdade, proporções perfeitas, lugar potente quase místico ou religioso em aspectos ligados à luz e à calma”, resume.
O terreno de mil metros quadrados e 400 de área construída tem dois andares, três quartos, áreas comuns, onde os residentes e o time de apoio convivem, além de uma piscina cercada por vegetação. “Gosto de sentar no sofá da sala principal e olhar para o jardim. Essa integração, como um corpo só, sempre me toca.” Ao entrar pela primeira vez, a sensação foi de incredulidade e encantamento. “Como uma casa assim existia em São Paulo, e quase ninguém (fora arquitetos) sabia da existência?”, recorda Laloum.
Mas o projeto é anterior à busca pelo espaço. “Há muitos anos, coleciono e acompanho artistas antes de entrarem em galerias”. Nessa relação, ele entendeu a importância de investir no potencial e materializou um lugar onde possam produzir com menos limitações de espaço, de material ou de tempo, onde experiências se misturam e fluem, além do encontro entre artistas e público, embora não esteja aberta à visitação.
Apesar de reservado, o nome do empresário francês é imaculado no circuito da noite paulistana desde os saudosos anos 2000. Em um passado, agora distante, Laloum era sócio do extinto Bar Secreto, responsável por receber artistas do calibre de Madonna, Bono (do U2), Michel Gondry e Marc Jacobs. Hoje, comanda uma empresa focada em tecnologias emergentes, a Distrito, e uma de comunicação, a United Creators. E faz questão de frisar que a Domo Damo não está personificada nele. “É uma plataforma para artistas, lugar de incubação, desenvolvimento e troca. Um parêntese que possa gerar evolução e transformação”, complementa.
Nômade há quase três anos, a artista Luana Vitra, de 28 anos, de Contagem (MG), está na Domo Damo há cerca de três meses – com passagem por Lisboa anteriormente. Chegou a ficar mais um período no início do ano em São Paulo. Pegou todos os ciclos de artistas que passaram pela casa. Ela enaltece o percurso da luz durante o dia. “Começa nos quartos (de costas para a rua) e se põe na cozinha. Bonita transição”. Seu trabalho, focado em escultura, instalação, dança, desenho e performance, está na 35ª Bienal de São Paulo até dezembro.
A mineira estuda o ar como condutor de informação, usando metais como plataformas. A maior parte do tempo que passa no espaço é trabalhando, seja em obras, seja online – organizando a produção ou dando entrevistas. O projeto e o staff (Roberta e Jane em especial) a mimam de um jeito especial: “Não dá vontade de sair, só vejo quem vem me visitar. Tudo o que preciso está aqui”. O espaço desperta sentimentos que a fazem se sentir bem. O convívio é ponto importante, de relações férteis, criação de amizades e acolhimento.
O artista visual carioca Matheus Ribeiro, de 29 anos, mudou-se para São Paulo depois de receber o convite de Laloum ao voltar de uma exposição em Paris e outra no Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR). Ele acompanhava seu trabalho na ilustração, antes mesmo da pintura em telas grandes.
Com a mudança para a capital paulista, segue a pesquisa “Fechar os Corpos”, destinada aos povos originários, religiões de matriz africana com questões ambientais como pano de fundo, resgatando elementos afro-brasileiros. Tinha medo de abrir mão do ateliê, no Jardim Botânico no Rio, para viver em uma construção “rígida”. Mas se enganou. “É repleta de verde, tem um jardim incrível com visita dos pássaros, como sabiás e bem-te-vis”, descreve.
Ele fica hospedado no quarto de cima, arrematado por uma claraboia piramidal. “A luz entra o dia inteiro, projetando-se de formas diferentes no decorrer das horas. Sempre muito claro, bom para quem pinta um espaço com tanta luz”. Recém-chegado, ainda está sentindo a cidade. Mas sabe que ali a frequência vibra diferentemente da Pauliceia que nunca dorme. “A autonomia traz amadurecimento, sem distração, e estar apenas com meu trabalho me torna detalhista”.
Cem dias se passaram entre a chegada e a partida da brasiliense Poli Pieratti, de abril a agosto deste ano. Atriz de formação, a fronteira entre o figurativo e o abstrato é o que rege a multiartista de 36 anos. Sentiu-se em casa com a construção modernista de concreto aparente, tão presente na natal Brasília. Ocupar o espaço é como adentrar uma escultura.
“Impressionam-me os sons, a acústica, a reverberação enquanto portal. Escutar isso, junto das luzes altas das claraboias, instaura um clima celestial”, detalha. “A escala e a materialidade da casa geram uma mistura de prazer e espanto. O brutalismo me convoca a mostrar, também, a minha brutalidade, as marcas do meu processo. As cicatrizes, as manchas e os relevos do concreto acabam por revelar as minhas próprias imperfeições”.
Na residência, produziu em um fluxo intenso: 27 telas em formatos pequenos e grandes – algumas beiram três metros de altura. A casa fez sua escala crescer, mas também convocou gestos mais delicados, pinceladas radicalmente suaves criam contraste com a arquitetura. Seu detalhe favorito é a coifa da cozinha, que não tem maquinário nem sugador, mas um desenho que provoca a subida do ar quente. “Isso e os ângulos de luz que recortam a casa o dia todo. Minha referência do Paulo Mendes da Rocha eram casas mais próximas aos bunkers, ambientes quase cavernosos. Tive a sorte de morar em uma das mais solares que ele fez”, resume.
Apesar do lar ser temporário, acredita que a conexão com as pessoas já é atemporal. “Uma imersão intensifica o trabalho, mas expande também os afetos. A arquitetura tornou-se lar quando entendi isso. Que a conexão com as pessoas que conheci ali seguiriam vivas em grande escala”.
As primeiras residências vieram por convite, mas pode ser que, em breve, haja chamadas abertas. Mas, se em apenas oito meses, a Domo Damo já recebeu diferentes artistas de forma transitória, como o congolês Merveille Kelekele Kelekele, não é impossível estender o projeto fora do Brasil em pouco tempo. Afinal, Benjamin, seu parceiro no projeto, tem atividades de arte em Los Angeles e em Milão. “Queremos criar uma história de amor entre a casa, os artistas e as pessoas que a frequentam. Um lugar generoso, aberto, sem pretensão, com ambição, e com a energia da criação e do compartilhamento”. E assim tem sido esse ambiente de potência, luz e amplificação dessas jornadas.