Djamila usa look Chloé e, Conceição, Mônica Anjos (Foto: Cassia Tabatini)

Vozes de gerações distintas, as escritoras Conceição Evaristo e Djamila Ribeiro se reuniram a convite de BAZAAR para uma conversa franca sobre passado e futuro, representatividade e solidão institucional.

Djamila Ribeiro tornou-se imortal pela Academia Paulista de Letras, ocupando a 28ª cadeira da APL, em setembro do ano passado. A pesquisadora e mestre em Filosofia política é autora de livros como Lugar de Fala, Quem tem Medo do Feminismo Negro? e Pequeno Manual Antirracista. Além de comandar o Espaço Feminismos Plurais, em São Paulo, vem se dedicando à publicação de outras autoras, em especial no eixo sul-global. Seu próximo projeto é o livro Feminismo Dalit: uma introdução (Jandaíra), programado para o próximo semestre. 

Conceição Evaristo recebeu, recentemente, o troféu de intelectual do ano no Prêmio Juca Pato, pela primeira vez concedido pela União Brasileira de Escritores a uma mulher negra desde sua criação, em 1962. Seu trabalho mais recente foi o livro Canção Para Ninar Menino Grande, de 2022. Com a recém-inaugurada Casa Escrevivência, espaço de intervenção social através da cultura no Rio, a autora mineira de 77 anos anos pretende se dedicar à escrita em 2024. Se elas foram as primeiras em muitas cátedras, celebram seu legado da forma mais pura: abrindo espaços para quem vem adiante e, o mais importante, evidenciando mulheres que vieram antes delas. Leia a íntegra desta conversa:

Harper’s Bazaar: Qual é a primeira memória que vocês têm uma da outra?
Djamila Ribeiro (DR): Conheci a Conceição, lendo. Tive acesso ao Cadernos Negros porque meu pai tinha muitas edições. Venho acompanhando Conceição à distância com muito carinho e admiração há muito tempo. A primeira vez que a vi foi durante a ocupação Abdias Nascimento, no Itaú Cultural, e tive a oportunidade de entrevistá-la, em 2015, para a Carta Capital. Foi muito marcante.

Conceição Evaristo (CE): O que me chama atenção, e é muito honroso e gratificante, é a relação com pessoas tão jovens – porque você tem idade para ser minha filha – e poder reconhecer em você e outros jovens, que convivo, essa potência. Saber que vocês me estimam é um certificado de que a minha vida está valendo a pena. Venho te acompanhando de longe até o momento que eu faço a apresentação do seu livro, Cartas Para Minha Avó (2021). E na Academia (Paulista de Letras), também. Foi um momento muito glorioso para todas nós, mulheres negras. Fiz questão de estar ali.

DR: Também estivemos juntas, também, na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) que estava online por conta da pandemia, em um debate com a Alice Walker.
CE: Hoje, estava em uma reunião, porque a gente está estruturando a Casa Escrevivência, e recordando justamente isso. Sou de uma geração que não conheci nenhuma escritora negra de perto. E até mais: minha geração não conheceu, também, pelo menos dentro de Belo Horizonte, pessoas negras que tivessem uma liderança. Não que não existissem, mas não eram visibilizadas como, hoje, nós somos. Em Belo, Horizonte havia uma grande mulher negra (Esmeralda de Jesus), estamos falando do final dos anos 1960, início dos 1970, e acho que poucas pessoas negras tinham essa mulher como referência. Hoje, se vive uma situação, onde você vai, fala seu nome em uma escola e todo mundo te conhece – professores e alunos. Fala meu nome e o de outras intelectuais negras, há uma juventude que nos conhece. Você já cresce com essa referência. A própria Sueli Carneiro, Lélia González, (Maria) Beatriz Nascimento. Mas, a minha geração, não. Fui conhecer essas mulheres já adulta. E são mulheres da minha geração.

DR: Você é pioneira e referência para todas nós. Na primeira vez em que te entrevistei, me tocou muito você falando que o problema da mulher negra não era escrever o livro, mas publicar. Você inspirou a nossa geração, também, a dizer e questionar o mercado editorial. E se engajar nessa discussão, até para pensar em iniciativas, como é o meu trabalho hoje de publicar e compreender todo esse mundo. Os Cadernos Negros e Quilombhoje foram iniciativas pioneiras, que influenciaram a minha geração e as futuras, você faz parte disso, e nos faz sentir acolhidas porque a gente abre o livro e se vê. O seu trabalho, a sua voz, a sua literatura – porque a gente abre o livro e se vê através da sua escrevivência. Mas, também, o trabalho que você fez e faz, de nos incentivar. Se a gente tem, hoje, mais mulheres negras publicando, a gente deve isso a você.

CE: Tenho insistido muito nessa ideia de registrar os nossos feitos e de pensar tudo aquilo que a gente vem construindo. Se, no feminismo branco, as mulheres descobriram e afirmam que escrever é um ato político, para nós, negros, publicar também. Justamente porque há essa luta com significado, de os nossos textos serem reconhecidos. Nossa teoria nasce na prática. Vai fazendo, um dia para pra pensar nossos feitos, constrói um discurso e registra. Nessa briga, também, forçando esse campo editorial. Quero retomar a luta de Carolina Maria de Jesus, quando publicou seu primeiro livro com a mediação do jornalista (Audálio Dantas). Talvez, em vida, nunca tenha pensado sobre a importância desse ato por brigar para que seus livros fossem colocados à venda. Para hoje, a gente enfrentar outra forma de luta, mas com mulheres negras criando editoras, sendo responsáveis por selos… É muito próprio e verdadeiro quando a gente fala que os nossos passos vêm de longe.

DR: E agora a gente tem nossos caminhos se cruzam, também na Itália. A gente está na mesma editora lá, com a mesma tradutora. Você vai, em breve, para lá?
CE: Com a pandemia, fiquei muito medrosa e reticente. Antes, avião já era uma coisa que não gostava, não tinha prazer algum, mas viajava. Depois, fiquei mais temerosa. Inclusive, vou para São Paulo de carro. Nunca mais tomei ônibus de viagem nem peguei voo nenhum, mas já começo a pensar em uma forma de romper com esse medo. Tive este convite para a Itália, que não fui, e também para Portugal. Agora, o livro Becos da Memória foi lançado em tcheco. Leio tudo, mas não entendo nada. Só sei porque é meu nome que está lá (risos). Mesmo em Paris, a editora lançou Olhos D’Água na pandemia, vou ver se consigo romper esse medo. Gostaria muito de ter ido à Itália, não fui de medo.


HB – O que é memória para vocês?
CE: Tenho afirmado que para os povos afrodiaspóricos, no nosso caso em terreno brasileiro, memória é o que nos dá identidade. Memória negra é que nos conforma como brasileiros, por isso gosto muito dessa nacionalidade hifenizada de afro-brasileiros. Porque me parece que a nossa condição histórica, como sujeito afrodiaspórico, a memória tem uma importância muito grande, na medida que a história ciência desconsidera a saga dos afro-brasileiros. Quando nós pensamos na nação brasileira, não há como negar que a presença dos povos africanos e seus descendentes marca a nacionalidade brasileira. Quando se pensa em Brasil, quando se olha para o brasileiro, a presença negra – alguns sociólogos gostam muito de falar dessa nação mestiça – está na base dessa nação mestiça. Só que toda essa essa importância dos povos africanos e seus descendentes no Brasil, esse caráter simbólico, que marca a face da nação, a história desconsidera ou, então, é contada de maneira errada.

A memória – ela vai se confundir, também, com a ficção, vai se confundir também com a história – essa memória dos povos africanos, essa memória que a gente guarda tanto pela oralidade, o resguarda também uma leitura às avessas da própria história. Eu me lembro que Joel Rufino falava muito isso: o Quilombo de Palmares durou quase 100 anos, mas nós sabemos muito mais da Inconfidência Mineira, que não durou nem cinco anos. Então, fatos ligados à saga negra são desconsiderados pela própria História. Para mim, esse vazio entre lembrar e esquecer, esse vazio que a história-ciência deixa, é onde nós habitamos e criamos a nossa memória. Para mim, o povo negro se faz eterno da nacionalidade brasileira pela memória e uma memória que, inclusive, transparece no próprio corpo. Porque não há como olhar um corpo negro negro, da minha cor, ou um corpo mestiço do Brasil, e não vir a memória da própria escravização. Por exemplo, quando você pensa na nação brasileira em termos culturais…

Uma vez eu vi o Ivani Ribeiro dizer uma coisa bem interessante: quando qualquer brasileiro que sai do País, ele pode ser branco ele pode ter os olhos azuis e pode ser negro. A primeira coisa que perguntam para ele, ou o que se espera dele, é que ele saiba sambar – o que é uma loucura. Porque eu sou negra e não sei se sambar. Mas ninguém pergunta para o brasileiro se ele sabe dançar uma polca ou uma valsa. Até os dados culturais ou, principalmente, os dados culturais marcados pela presença negra identificam ou marca a nacionalidade brasileira. No caso de nós, negros, a nossa memória corporal. Nosso corpo desperta determinada memória ou até uma interpretação do Brasil. Por que o branco, quando chega nos Estados Unidos, achando que é branco, é considerado um povo Latino.?Então, essa memória negra se eterniza tanto no corpo simbólico da nação como nos corpos físicos, que representa essa relação.


DR: Você recebeu o troféu Juca Pato, como intelectual do ano, e você foi a primeira mulher negra a receber esse troféu na história do Brasil. O que isso representa para você?
CE: Tenho dito que o importante não é a gente ser a primeira, mas abrir perspectivas. Há um prazer, sim, pensar em termos pessoais, interessante para colocar no meu currículo, ter isso registrado como a primeira mulher negra a receber esse prêmio. Mas todas as vezes que nos destacam em alguma coisa ou em algum lugar, cabe a cada pergunta: e outras? E as que ficaram para trás? É bom ser reconhecida como a primeira mulher a ser destacada como a intelectual do ano, mas isso, também, de certa forma, nos leva a questionar: e Lélia? E Beatriz? E Sueli? E Helena Theodoro? E Neusa Santos (Souza)? Tantas e tantas outras mulheres, que estavam aqui como intelectuais, pensando na nação brasileira, criticando, apresentando outras formas de interpretação da nação. Dentro da militância, ativamente produzindo e também pensando. Por que essas mulheres não foram reconhecidas? Eu acho que também, eu reconheço, que vivem uma ambiência social que esse reconhecimento, também, já vem sido fabricado, já tem sido pensado.

Hoje, também, é uma ambiência que facilita. A gente não pode parar no contentamento pessoal, até porque senão a gente corre o risco, também, de cada  vez que nos é conferido um título, a gente não pode perder essa perspectiva que nós somos construídos por um coletivo. Antes do nosso lado, outras mulheres, outras pessoas estão, também, produzindo. Porque senão a gente corre o risco de ser destacada de nosso local de pertença e virar um objeto estranho. Quando eu falo isso, por exemplo, eu tô pensando muito em termos de literatura, eu tô pensando muito e Machado de Assis. Como a história literária e a crítica literária em relação a Machado de Assis o destaca da ambiência negra, coloca Machado de Assis no lugar de exceção. Eu acho que toda vez que a gente for colocado no lugar de exceção, e a exceção só confirma a regra. Espero que não seja a primeira e a única, e que daí eles passem a dar mais atenção à nossa produção intelectual.
DR: Como a Toni Morrison, que é a primeira e a única a ganhar o Nobel de Literatura…

Conceição usa vestido Mônica Anjos (Foto: Cassia Tabatini)

CE: Como você encara isso? Fica muito à vontade ou também acha que acaba ficando em um lugar meio perigoso, porque todo mundo espera que você represente todo mundo ou espera que você signifique a própria trajetória das mulheres negras. E as nossas histórias, muitas vezes, elas se parecem e muitas vezes elas se confundem. Quando você pensa no coletivo, na representatividade, e que você tem uma um papel sobre isso, como você se sente? Que prazer ou que angústia é essa?
DR: Como eu vim dos movimentos de base, a organização que eu trabalhei se chama Casa de Cultura da Mulher Negra de Santos, o nome da biblioteca era Carolina Maria de Jesus, foi ali com 19 anos que eu soube quem era ela e tinha vários livros escritos por mulheres negras. Então, o mundo para mim foi aberto a partir daquela perspectiva, daquela literatura de mulheres negras, a partir de um lugar de construção. Isso, para mim, foi algo que ficou muito forte. Fui estudar mais tarde, como dizem, entrei na faculdade já com 28 me, formei com 32, e foi um lugar muito solitário, sozinho, difícil e hostil. Sobretudo de estudar Filosofia. Não tive o que anos antes, quase duas décadas,  eu tinha tido de ver mulheres negras e pensar o mundo a partir delas. Ali era um mundo pensado só a partir da perspectiva masculina, branca e europeia. Foi muito duro para mim, ser a única da sala, olhar a bibliografia e não se enxergar.

Mas, ao mesmo tempo, acho que por ter vindo desse lugar foi o que me fortaleceu e, ali na faculdade, construimos um grupo: pessoas negras, LGBT+, para a gente poder estudar os temas que a gente queria,  organizar eventos dentro da universidade e tudo mais. Quando eu me formo, vou para o mestrado, defendo a dissertação em 2015 (eu tinha 35 anos) e aí eu lanço, em 2017, e penso a coleção Feminismos Plurais. Por ter vindo deste lugar das mulheres negras, de ter passado por esse período de solidão institucional, e hostilidade, que o meu primeiro livro (Lugar de Fala) já nasce dentro de um projeto coletivo. Era muito importante que fosse assim. Quando lancei, a gente já tinha anunciado a coleção Feminismos Plurais e mais seis títulos. Foi importante para pensar essa coletividade, que somos diferentes, porque tem sempre essa cobrança de que a gente represente todas e todo mundo, negando a nossa multiplicidade. Foi até um antídoto para ir lidando com essa angústia, mas mesmo assim ela aconteceu.

A Femininos Plurais nasce, aí vem Lugar de Fala, no mesmo ano vieram outros títulos até eu ir para a Companhia das Letras. E aí os livros venderem muito no Brasil, ficar mais conhecida no Brasil e com tudo isso vem um peso também. Primeiro que é um lugar, também, que eu sinto de incômodo das pessoas. E o incômodo de, muitas vezes, essa falta de leitura, de letramento das pessoas no Brasil. Querem colocar a gente em determinados lugares, e eu acho que eu fui conseguindo combater essa angústia justamente porque eu não falo (pelo coletivo), tem outras mulheres no próprio projeto. Porque, para mim, era importante vir junto, não estar sozinha.

Era importante trazer autoras, que muitas vezes esse País não olha, como as mulheres quilombolas que nós publicamos, autoras que – a grande maioria delas – foi o primeiro livro publicado pela coleção. Hoje, são autoras que estão publicando por editoras maiores. Para mim foi muito importante seguir nesse projeto independente para combater essa angústia, e também de ter, minimamente, o controle da nossa narrativa. Porque as pessoas querem contar histórias sobre nós. A Toni Morrison tem uma frase que gosto muito: “As definições pertencem aos definidores, não aos definidos”.

As mulheres negras me salvaram neste lugar, quando eu leio tantas autoras diferentes entre si, de várias nacionalidades, tão potentes, e isso me fortalece e me coloca dentro dessa história, desse coletivo, dessa coletividade, dessa construção. Quando a gente lança o Selo Sueli Carneiro, está dizendo que tem tantas mulheres que vieram antes, abriram caminhos, e essa dimensão para mim é fundamental. Mas claro que tem muito desses momentos de angústia. Agora, quando me perguntam qual seu novo projeto, eu falo: estou publicando autoras. É isso que eu tenho feito junto com a Lisandra (Magon de Almeida).

Este ano, publicamos Lesbiandade, o décimo quarto título da coleção com Dedê Fatumma, uma autora da Bahia, trazendo a perspectivas das mulheres lésbicas, e publicamos a nossa primeira tradução de uma afro-latina, que é a Velia Vidal, uma autora afro -colombiana, trouxemos ela aqui para o Brasil para fazer os lançamentos. Estou gostando muito, agora, de ficar nesse lugar de coordenadora, de selo, e junto com a Lisandra publicando outras mulheres negras e, em especial, as do sul do mundo. Nós, brasileiras, temos muito mais dificuldade de ter o nosso trabalho internacionalizado. O fato de produzir em português brasileiro (PT-BR)… Isso que você falou: só conhecem o Samba e a gente tem tanta coisa além disso para mostrar.

CE: Importante você falar de trazer as escrituras afro-latinas… Porque, primeiro, escrever em português é, de certa forma, limitante, diferentemente de quando você escreve na língua inglesa ou em espanhol. O nosso conhecimento, também, como brasileiro e os nossos países circundantes, é muito pouco. Temos uma bibliografia que vem dos Estados Unidos – ainda bem que é uma bibliografia negra, como Toni Morrison, Alice Walker e todas as pensadoras afro-americanas são muito bem-vindas, também, na construção e na interpretação de nossas teorias enquanto mulheres negras brasileiras. Mas, quando se trata da América Latina, a gente acaba sabendo muito pouco. Engraçado que, mesmo sendo em espanhol, que, teoricamente, nós teríamos mais possibilidade de entendimento, a bibliografia ou o contato com a língua espanhola falada aqui na América Latina, as teorias latinas, nós temos muito pouco. Mas é uma questão de publicação, o que as editoras valorizam. Porque há teóricos de língua espanhola, a maioria branca. Chega um material, mas é produzido por homens brancos. Por mulheres, a gente se conhece pouco, e negras, menos ainda. Esse trabalho de tradução, de edição, tem um lugar (a ser explorado)…

Ele vai crescendo e encontra um lugar que antes era de necessidade. Eu me lembro que, ainda no meu tempo de graduação, e muito tempo depois, nós não tínhamos obras teóricas da Toni Morrison traduzidas. Como, também, a própria obra de Angela Davis. Custou muito a ser traduzida. Se você pensa no conjunto de obra dela, não sei se a gente tem hoje a metade dessa obra traduzida. As pessoas que acessavam os originais, em inglês, que é o teu caso, tinham essa possibilidade. Mas quem não fala ou lê em inglês, como eu, a gente ficava sempre esperando a tradução. Tenho insistido nisso: tem um grupo de tradução da Bahia, não sei se você conhece a professora Denise Carrascosa, é um grupo que tem questionado essa tradução. Essa tradução, também, precisa ser feita por mulheres negras. Há uma possibilidade de, justamente, dessa tradutora entrar no processo porque a tradução também passa pela interpretação. A necessidade dessa pessoa, que está lendo esse texto e está interpretando, possa traduzir a experiência, também. Se ela tem uma experiência ou história afrodiaspórica, tem (bagagem)… Não estou dizendo que uma pessoa que não tem essa experiência não possa fazer uma tradução. Pode, sim, aliás. Mas, se tiver, vai significar mais para o texto, porque a tradução se forma mais próxima e ela vai trair menos o pensamento original.

DR: E, hoje, você está com a casa Escrevivência, no Rio de Janeiro. Acompanhei pelas redes a inauguração. Quais são seus planos para agora e para o futuro? Sei que você também está coordenando esse trabalho incrível da Carolina Maria de Jesus, na Companhia das Letras . Queria que me falasse um sobre esses planos…
CE: Era uma casa que a gente já vinha pensando há muito tempo, e foi ganhando forma, foi modificando, até hoje a gente ter esse processo de mutação da ideia original, que era só uma biblioteca. Fico muito feliz e queria te parabenizar. E nos parabenizar, porque três projetos culturais, que considero revolucionários, são marcados justamente pela produção e pela iniciativa de mulheres: é a Casa Femininos Plurais, a Casa Sueli Carneiro e, agora, a Casa Escrevivência. Isso é muito sintomático, que três mulheres negras estejam marcando a cultura brasileira e o pensamento a partir de uma perspectiva negra. Isto mostra que nós estamos preenchendo lugares que era vago no pensamento brasileiro. Isso é uma responsabilidade, mas, também, sem qualquer modéstia, revela nossa competência. Porque não é fácil pensar um espaço cultural gerido, parido, por mulheres negras. Até porque, mesmo aqueles núcleos de cultura em que a presença negra é bastante sólida, e quero voltar para música, para dança, na maioria das vezes, essa presença negra está ali, mas não é ela que tem a gerência.

Quando a gente pensa Escola de Samba, é muito sólido na representatividade da cultura brasileira, mas quem está na gerência das escolas de samba? Quem, inclusive, lucra à medida que vão se capitalizando? Isso, em um setor cultural em que a presença negra é, mais ou menos, esperada. Ora, quando se trata de uma casa de cultura e são casas, também, que tem uma perspectiva negra e que tem também algo que a “sabedoria” branca toma como si. Por que as nossas casas também tem esse caráter de pesquisa, de intervenção social através da cultura e de pesquisa. Ora, quando as pesquisas valorizadas ou quando qualquer projeto de intervenção cultural, também, ele tem um destaque se ele partir de determinados lugares, também, já comandados ou marcados por uma presença branca, as nossas casas tem muito desafio pela frente. E, também, tem um lugar que é construído a partir de nossa gerência e a partir de um coletivo. Não há como pensar a Casa Sueli Carneiro, o Espaço Feminismos Plurais ou a Casa Escrevivência sem pensar no coletivo.

A casa está nascendo, fazendo o estatuto para concorrer a patrocínios. Mas a casa já está aí, tem bastante solicitação de trabalho, que não pode nem cumprir ainda porque não tem um espaço propício. Nesse espaço aqui não cabem os nossos sonhos. Mas, a gente pensa uma casa que vai abrigar pesquisadores, vai trabalhar com treinamento de professores e um espaço para atividades com crianças e vai ser, também, um espaço de memória. Tanto de tudo o que tenho feito em termos de publicação individual – a partir de uma perspectiva negra – como também uma biblioteca com livros raríssimos, tanto de autores brasileiros como afrodiaspóricos. E um acervo que não é só de autoria negra, mas o acervo mais volumoso é o de autoria negra.

Minha ideia para 2024, se eu conseguir cumprir, é me dedicar à escrita. Tenho cinco trabalhos entre romances, livro de contos, de poema, que estão parados e quero muito me debruçar sobre essa autoria nova da literatura, ler essas meninas – falo que eu tenho idade para chamar todo mundo de menina, não é infantilizando as pessoas. Mas ver o que essa autoria contemporânea, essa autoria jovem, está publicando. Tenho muita vontade de fazer um livro de ensaios sobre essa nova literatura produzida na contemporaneidade por essa autoria nova. Tenho muita coisa para fazer ano que vem, e preciso me dedicar à escrita. Preciso porque viagem também cansa. E quais são os seus projetos para 2024? Você tem tempo de projetar tudo (risos).

DR: Tenho uma filha de 18 anos (Thulane), caminhando para a Universidade, quer estudar Matemática.
CE: Que bom  porque sai daquilo também que nós costumamos fazer, né? A gente tem que pensar que as áreas do conhecimento são vastas.
DR: A gente está nessa preparação, vai fazer a prova, enfim… Em 2024, a gente vai seguir publicando. Estou com um projeto cuja  tradução pronta. A (editora) Jandaíra chamou um grupo de tradutoras para um livro chamado Feminismo Dalit, escrito por várias pesquisadoras indianas que vieram desta casta – a mais discriminada na Índia. E elas estão propondo um feminismo a partir do lugar delas. E pretende publicar no primeiro semestre do ano que vem. Também sigo nos projetos no Espaço Femininos Plurais. Inclusive, tem que vir conhecer e fique à vontade para organizar eventos literários. A casa é sua! Agora, a gente está tá focando nos novos projetos, a biblioteca tem seus livros lá para consulta pública, e temos os projetos de apoio às mulheres – sobretudo às vítimas de violência, com atendimentos jurídico e psicológico gratuitos e atendimento psicológico para mulheres negras que queiram ter atendimento clínico, no geral. Vim de uma organização que oferecia isso. Estou muito focada nos projetos e interessada em publicar mulheres do sul-global.

DR: Deixamos de falar alguma coisa?
CE: Agora que a coisa estava ficando boa? (risos). Fiquei entusiasmada e curiosa para ler sobre o feminismo dálit, acho que vai ser uma descoberta para a gente…

DR: Estamos em fase de financiamento e assim que mandar para a gráfica, envio um exemplar para ti. Quero organizar eventos, e quero você conosco.
CE: Gostaria muito… Já me vi lendo esse livro, indo para a Índia (risos). Queria te dizer que há uma parte do estatuto da Casa que propõe esse diálogo com nosso grupo. Vocês estão nesse lugar de referência.
DR: Com certeza! É sempre um prazer falar com você.
CE: Que bom. Igualmente, minha filha. Boa sorte e ótimo trabalho!

Djamila usa vestido Renata Buzzo (Foto: Cassia Tabatini)


CRÉDITOS
Styling: Bruno Uchoa
Produção de moda: Laura Cavalcante
Make up: Erika Livran
Coordenação: Mariana Simon
Produção executiva: Zuca Hub
Agradecimentos: Brenno Tardelli, Cristina Warth, Margot Abrahão e Monica Ramalho