Diretora e roteirista Justine Triet (Foto: Gilbert Carrasquillo/GC Images)

A diretora Justine Triet é a responsável por mimetizar o aclamado filme Anatomia de Uma Queda (com cinco indicações ao Oscar), que nos faz refletir sobre a espetacularização das nossas narrativas e o limiar líquido entre privado e público. Na trama, o espectador é convidado a repensar sobre um acidente de inverno, ocorrido nos Alpes da França, onde o marido francês da escritora alemã Sandra (Sandra Hüller) cai de uma janela. Esposa e filho o encontram morto na neve, e a narrativa se transporta para dentro de um tribunal. Afinal, o ocorrido pode ser interpretado como suicídio, homicídio ou acidente?

“O filme assumiu a forma de um interrogatório prolongado, com cenas alternando entre o lar do casal e o tribunal, onde os personagens são incessantemente questionados. Busquei trazer uma sensação de realismo, adotando um estilo documental”, conta a diretora. “Também desejava aprofundar as complexidades da história e evocar uma variedade de emoções. Para isso, optei pela simplicidade: a ausência de música adicional e um tom cru e despretensioso que diferencia este de meus trabalhos anteriores.” A seguir, leia a entrevista com Justine que consta nas notas de produção e que Bazaar reproduz na íntegra:

Cena principal de “Anatomia de Uma Queda” (Foto: Divulgação)

Qual foi o ponto de partida para Anatomy of a Fall?
Minha intenção era criar um filme que retratasse a decadência de um relacionamento. O conceito era representar a descida física e emocional de maneira técnica, simbolizando o declínio de sua história de amor. Esse casal tem um filho que descobre o relacionamento tumultuado deles durante um julgamento que examina cada aspecto de seu passado. Neste desenrolar, o menino transita de um estado de completa confiança na mãe para a dúvida, marcando um ponto crucial em sua vida. O filme acompanha de perto essa transformação.

O filme começa com uma tomada desconcertante de uma bola rolando por uma escadaria…
Essa obsessão pela queda é recorrente ao longo do filme, inicialmente em um sentido literal. Sempre fui fascinada pela sensação de “peso do corpo” e pelo que é sentir-se caindo, uma fascinação despertada pelos créditos iniciais de Mad Men, onde um homem continua caindo. No longa, constantemente subimos e descemos escadas, observando a queda de vários ângulos para desvendar como ocorreu. Quis abordar de um ângulo lateral, razão pela qual introduzimos a bola como símbolo da queda, capturada por um cachorro que olha para Sandra, e prepara o terreno para as duas horas e meia de exploração.

Swann Arlaud e Sandra Hüller em cena (Foto: Diamond Films/Divulgação)

A batalha do casal com uma criança está no centro do filme…
Explorando as complexidades do compartilhamento de tempo em um relacionamento. É um tema que, na minha opinião, não é explorado com frequência no cinema e levanta questões importantes sobre reciprocidade, confiança e a dinâmica de uma parceria. Sandra Voyter, uma escritora bem-sucedida, e seu marido, um professor que também escreve enquanto educa seu filho em casa, desafiam o esquema tradicional de casal ao inverterem seus papéis. A busca de Sandra por sua liberdade e vontade cria um desequilíbrio, levando a uma exploração da igualdade em um relacionamento que é ao mesmo tempo poderoso e questionável.

O longa nos convida a refletir sobre nossas noções preconcebidas de democracia em um relacionamento e como ela pode ser desviada por impulsos ditatoriais e uma dimensão de rivalidade. Apesar de suas lutas, o idealismo do casal e sua recusa em se resignar a uma situação menos que perfeita são admiráveis. Mesmo em suas discussões, que são na verdade negociações, eles continuam sendo honestos um com o outro, revelando um amor profundo que persiste apesar dos desafios.

Você coescreveu com Arthur Harari. O roteiro não é adaptado de uma história real, mas está cheio de detalhes, especialmente detalhes legais, que parecem mais reais que a vida. Você consultou especialistas?
Sim, escrevemos juntos, compartilhando o trabalho. E recebemos orientações valiosas de um advogado criminal, chamado Vincent Courcelle-Labrousse. Nos consultamos para garantir precisão nos aspectos técnicos, bem como para obter uma compreensão melhor de como as audiências judiciais francesas são conduzidas. Isso me permitiu criar um longa francês e adotar uma abordagem diferente dos dramas judiciais americanos, mais focados no espetáculo. A decisão de apresentar blocos ininterruptos de audiências foi natural. Durante a pós-produção, passei um tempo considerável trabalhando com meu editor, Laurent Sénéchal, para desacelerar o ritmo, manter as tomadas imperfeitas e preservar uma sensação ligeiramente instável e crua. Não queria que fosse muito polido ou previsível. No final, descobri um novo prazer formal ao fazer este filme.

E você escreveu especificamente pensando em Sandra Hüller, não é mesmo?
Eu estava ansiosa para colaborar com ela novamente, seguindo nosso trabalho em Sibyl. Escrevi o roteiro com ela em mente, e isso foi uma das coisas iniciais que despertou meu interesse. Essa mulher liberta, julgada por sua sexualidade, carreira e maternidade: acreditava que Sandra traria complexidade e profundidade à personagem, sem transformá-la em mera “mensagem”. Assim que começamos, fiquei impressionada por sua convicção e autenticidade. Ela impregnava cada linha com um senso de realidade que emanava de dentro dela. Às vezes, até desafiava minha escrita e me impelia a revisar certas cenas. Ela tem uma presença palpável, e sua interpretação deixou uma marca duradoura no filme. No final, senti como se ela tivesse dado uma parte de si mesma ao projeto, e o que capturamos foi uma performance única.

Foto: Diamond Films/Divulgação

O uso de diferentes idiomas – francês, inglês e alemão – adiciona uma camada de complexidade à personagem de Sandra e cria uma sensação de opacidade…
Também mantém uma distância entre ela e o público como uma estrangeira em julgamento na França, que deve navegar pelos idiomas de seu marido e filho. Sandra é uma personagem complexa com muitas camadas, que serão exploradas no julgamento. Estava especialmente interessada em retratar a vida de um casal que não fala o mesmo idioma. Isso tornou a negociação deles ainda mais concreta, com a ideia de um terceiro idioma servindo como terreno neutro.

E você já tinha Samuel Theis em mente desde o primeiro dia?
Não, vi muitos atores para o papel, mas, acredite ou não, o personagem já se chamava Samuel. Mesmo que não tenha muitas cenas, ele é essencial para a história e precisava capturar nossa atenção imediatamente. Tenho que admitir, o acho muito atraente, com uma voz cativante e uma aparência suave que esconde uma camada mais profunda e densa. Queria filmá-lo porque ele tem uma certa densidade que adoro em atores – camadas físicas e internas que resultam em uma atuação envolvente.

E o Milo Machado Graner, que interpreta a criança, foi difícil de encontrar?
Sim, foi um processo longo. Cynthia Arra e eu passamos quatro meses procurando por crianças com deficiência visual, mas não encontramos. Então, expandimos a busca para crianças sem deficiência por mais três meses até, finalmente, encontrar o Milo. Jill Gagé, assistente de elenco, o descobriu, e ele nos impressionou imediatamente com seu talento. Milo se dedicou a aulas intensivas de piano, e, junto com Cynthia, consultamos especialistas em deficiência visual para determinar o nível apropriado de comprometimento para o personagem. Optamos por um nível leve de deficiência, com alta miopia que não afetava a visão periférica. Milo é uma criança incrivelmente talentosa com capacidades intelectuais e emocionais excepcionais e um sutil senso de melancolia.

Milo Machado Graner (Foto: Diamond Films/Divulgação)

Há um verdadeiro amor pela linguagem e pelo embate verbal nas cenas do tribunal, e Antoine Reinartz tem muito a ver com isso. Como foi escalá-lo para o papel?
O escolhi por causa da modernidade que trouxe ao personagem. Ele adiciona um elemento de estranheza ao filme e insere o mundo contemporâneo nele, que quebra a solenidade empoeirada do julgamento. Embora interprete o vilão, ele retrata um personagem muito sedutor, astuto e extravagante. Ele fala em nome do falecido, que quase nunca vemos, e precisa torná-lo cativante tanto para os jurados quanto para o público. Antoine traz uma dimensão de arena para o tribunal e retrata a violência civilizada da acusação.

Pelo contrário, Swann Arlaud interpreta um personagem bastante frágil, sensível, na defensiva…
Sim, eu não queria encenar um combate entre eles. O personagem de Vincent não é retratado como um virtuoso, ele é bom, mas não idealizado. Swann traz uma atuação matizada, uma apreensão, porque ele conhece sua cliente e se sente mais em perigo. Achei interessante que ele seja uma espécie de sósia de Samuel, que os dois compartilham algumas semelhanças. Fica claro que Sandra e Swann se conheciam anos atrás, e ainda há algo entre eles que não está completamente extinto. Nosso advogado consultor disse que quando os amigos pedem para você defendê-los, é sempre uma armadilha. Essa distância difícil ou impossível de superar era importante para a dinâmica desse duo. Fica claro que têm algo mal resolvido do passado.

Em um julgamento, a verdade é elusiva, e há um vazio que precisa ser preenchido pela fala. Permitimos exceções apenas através do uso do som. E, na realidade, essas exceções não são flashbacks: na cena da discussão, é uma gravação de som que de repente se materializa na tela, criando uma sensação de presença. Isso cria um vazio e é quase mais poderoso do que a imagem, na minha opinião: é tanto pura presença quanto fantasmagórico. Há também a cena em que Daniel reencena as palavras de seu falecido pai, de forma diferente. Desta vez, temos a imagem, mas é um relato de memória, uma invenção, ou, na melhor das hipóteses, um depoimento sem prova, como apontado pelo promotor. O tribunal é essencialmente onde nossa história não nos pertence mais, é julgada por outros que precisam reconstruí-la a partir de elementos dispersos e ambíguos. Ela se torna ficção, e é precisamente isso que me interessa.

Foto: Divulgação