
Vicenta Perrota, artista, estilista e ativista trans, vive no limiar de arte e moda – Foto: Vincent Catala
Quando era mais jovem, Vicenta Perrotta sonhava em trabalhar na indústria da moda. Mas estilista era algo pomposo, que demandava um sobrenome forte ou status de herdeira. Não era o seu caso. Hoje, a artista, estilista e ativista trans vive no limiar de arte e moda, transformando “lixo” em obras prontas para vestir, mas que também podem ser apreciadas em museus como o de Arte de São Paulo, o Masp. “Minha grande obra de arte é formar as pessoas nesse processo. Quando isso começa a ser replicado, torna-se tecnologia social”, resume.
Em seu trabalho, roupas e pedaços de tecido descartados ganham novo significado. “Upcycling não é para mim. Sustentabilidade é uma palavra fake. Vou sustentar o quê? O capitalismo? Meu processo tem um nome, característica e técnica oriundas de um pensamento coletivo. Transmutação têxtil é o termo correto”, resume. Para ela, o conceito vai contra o processo natural da moda, apesar da exclusividade. “Essa roupa não vai ter outra peça igual, por mais que replique o modelo.”
De malas prontas para o deserto do Atacama, no Chile, vai visitar o gigantesco “cemitério” de roupas usadas e dali dar o ponto de partida para um documentário, neste mês. “Vou pesquisar coletivos trans, mapear e começar uma produção multidisciplinar. A ideia é escrever o roteiro para, em um segundo momento, gravar”, conta. Vicenta expôs criações na ArtRio do ano passado e está catalogando seu acervo, com mais de 300 obras, entre fotos, roupas e publicações. “A intenção é montar uma biblioteca para que outros coletivos possam trocar tecnologias a partir da técnica que desenvolvi”, resume.
Natural de Campinas, no interior paulista, chegou a passar na faculdade de moda, mas seus planos foram boicotados pela própria família. Começou a produzir roupas e, depois, bijoux com twist pop. Bebeu de referências noventistas, à Madonna, Jean Paul Gaultier e Mercado Mundo Mix. Em 2013, ao ser expulsa de casa, encontrou abrigo na Unicamp, onde deu origem ao seu ateliê. “Acredito que a moda seja um agente de transformação pesado, tanto para o lado da alienação quanto para o processo de você se entender enquanto o que quiser.” Dentro desse espaço, desenvolveu seu método de construção das peças, onde retalhos e outros pedaços de pano, literalmente achados no lixo, ganham novo sentido. Ali, organizou uma produção intelectual e cognitiva. Ocupando este espaço público, entendeu que precisaria abrir frente para outras pessoas criarem e replicarem seu processo. Atualmente, comanda dois ateliês, o ATM Lab, que funciona no Centro Cultural São Paulo, na capital paulista, além 7do ateliê TRANSmoras (comandado por ela ao lado de Rafa Kennedy e Antonia Moreira), em Campinas, em que multiplica seu conhecimento e ensina sua técnica. Já ajudou a formar várias costureiras e estilistas, e deu início também a um processo político, onde pessoas trans podem se sentir seguras ao trocar experiências. “Transicionar é criar a melhor versão de si, se transformar no seu eu de fato. É alinhar-se com sua verdadeira identidade”, diz. Quer construir uma memória da população trans, e investir no empoderamento e formação de similares. A base disso tudo é a educação e a preocupação com o ciclo de consumo.
Para além das criações, Vicenta está mais interessada no ciclo de consumo e como a moda, de fato, pode mudar a vida das pessoas. A pesquisa é algo crucial na sua linha de produção. “Me vejo como artista, mas o mercado não me vê como tal”, lamenta. Em seus desfiles, gosta de contar histórias, com performance e maquiagem pensadas para corpos trans, com uma equipe verdadeiramente inclusiva. “A roupa que faço é agente de transformação. Quem veste minhas peças ou vai assistir a um desfile, entende o processo. Usei essa plataforma para hackear o sistema”, diz. Atualmente, as peças da Use VP são vendidas online e em mercados de arte como indumentária.