
Sebastião Salgado – Foto: Bob Wolfenson
Por Orlando Margarido
Os olhos azuis brilham e as espessas sobrancelhas brancas, sua marca, se eriçam quando Sebastião Salgado é indagado sobre uma suposta aposentadoria. “Estou e seguirei trabalhando até o fim”, assegura, em entrevista à Bazaar Man. “Isso foi um mal-entendido. Fotógrafos, assim como vocês, jornalistas, nunca abandonam o ofício.” No caso, a confusão se deu em uma entrevista ao The Guardian. O jornal inglês entendeu como ponto final de carreira a decisão do profissional de não mais realizar suas árduas epopeias fotográficas, a exemplo das séries Terra e Êxodos, e ainda por estar em plena organização de seu gigantesco acervo. “Estou com 80 anos, não tenho mais a mesma energia e nem há patrocinadores dispostos a bancar projetos como aqueles, que duram entre seis e oito anos. É um bom momento, portanto, para uma revisão, sem deixar o interesse pelo novo”, ele diz.
No tocante à memória, uma valiosa amostra está na seleção de cinquenta fotos expostas no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, até 28 de julho. Trata-se de uma série inédita de Salgado sobre a Revolução dos Cravos, em Portugal. No ano de 1974, militante em organizações de esquerda, ele estava exilado em Paris devido à perseguição pelo regime militar no Brasil. Viajou a Lisboa ao saber da ação de um grupo de capitães do exército local que culminaria com a derrubada do ditador António Salazar. Pegou emprestada uma câmera Leica de Lélia Wanick, sua companheira até hoje, e se tornou um dos poucos nomes a clicar o evento, incluindo a cobertura em Moçambique e em Angola, ex-colônias portuguesas. Foi na África, aliás, que o economista de formação, então empregado em um organismo internacional do café, decidiu se tornar fotógrafo anos antes.
A partir daí, é história. As imagens do 25 de abril lusitano celebrizaram-no e Salgado foi convidado a integrar a agência Sygma, em uma trajetória que incluiria ainda a Gamma e a Magnum, referências no fotojornalismo mundial. “Nelas, eu viajei pela Europa e África, cobrindo momentos sociais e políticos turbulentos, mas me in- quietava a desigualdade social e a miséria, temas que me tocam muito”, diz. Entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, ele se dedicou, em paralelo, a fotografar indígenas e camponeses em viagens por países latino-americanos. No Brasil, em 1986, realizou o antológico projeto sobre o garimpo de Serra Pelada, no qual se distinguem o padrão exaustivo de suas séries, o momento perfeito para o clique e a técnica do preto-e-branco e da luz natural, sem artifícios.
Pela maneira como capta tais contextos, a exemplo das séries seguintes, como Trabalhadores, nas duas fases de 1986 e 1996, Salgado foi criticado por uma possível estetização da miséria. Ele enxerga as críticas como uma reação equivocada a sua intenção de mostrar a força e dignidade de povos de países subdesenvolvidos. “Não tem outro jeito de fazer isso senão registrando a crueza das situações em que vivem.” A continuidade do trabalho na série Êxodos (2000), registro de ciclos migratórios em 35 países, confirmou a certeza desse pensamento humanista. A essa altura, o fotógrafo já havia fundado sua própria agência, a Amazonas Imagens, não por acaso, nomeada assim em função da região de maior interesse em suas últimas iniciativas, Gênesis (2013) e Amazonas (2021).

Sebastião Salgado – Foto: Bob Wolfenson
Voltadas aos povos originários, as séries apontam também o olhar para a natureza, a paisagem, o que coincide com outro tipo de militância do casal no Instituto Terra. A organização de restauro ambiental foi fundada em 1998 na região mineira de Aimorés, onde Salgado nasceu, depois que o pai português e a mãe suíça ali se estabeleceram vindos do Espírito Santo. No território de três mil hectares, o fotógrafo tem experimentado “brincar” com o celular e suas possibilidades, também utilizando drones para registrar a propriedade. “Nunca fui fetichista dos grandes equipamentos, das câmeras e técnicas espetaculares. Esses brinquedos aqui [os celulares] dão uma liberdade incrível.”
É com esse mesmo olhar atualizado que o fotógrafo retorna às mais de 400 mil imagens guardadas para selecionar as melhores, publicá-las em livros e organizar exposições. Busca a quem doar seu espólio, seja para uma instituição brasileira, seja para uma internacional. Ou, um desejo maior, abrir sua própria fundação. “A essa altura, não posso acreditar que ainda tenha todo o tempo do mundo”, diz, piscando um dos olhos herdados da genética suíça.