
Sol Camacho no rooftop, com parede de blocos de vidro, que se replicam em todos os andares – Foto: Marcio Simnch
Sol Camacho soube que precisava desocupar o imóvel onde mantinha seu escritório, na região dos Jardins, em São Paulo, um ano e meio antes de arranjar uma solução. A propriedade havia sido vendida para uma incorporadora transformar a área em um prédio residencial. Nada seria reaproveitado. “Estão demolindo farmácia, cabeleireiro, boteco. Não tem nenhuma atenção para cuidar da cidade. Esses pequenos negócios dão vida à região. Na hora que se sobe um prédio com arquitetura sem identidade, cheio de grade e porteiro eletrônico, você acaba com o bairro. É uma triste falta de compreensão sobre as construções”, diz a arquiteta mexicana radicada no Brasil desde 2011.
O que ela não esperava era encontrar um edifício de quatro andares bem em frente ao lugar onde trabalhava, na mesma quadra em que morou desde que chegou ao País. O caixote de 550 metros quadrados serviu como loja de uniforme nos anos 1970, e depois virou depósito. Nos anos 2000, abrigou uma loja de móveis, que acabou falindo. Ficou fechado por 12 anos até que, em 2021, ela pediu um empréstimo para comprar e reformar: reforçar a estrutura, rasgar janelas e adaptá-lo para virar um 3×1. “É um híbrido de casa, escritório e galeria. Do lado de fora, não dá para imaginar”, resume sobre o projeto que vai na contramão do movimento capitaneado por prédios de miniapartamentos. “A obra transformou completamente o edifício e o deixou funcional. Na fachada, fizemos uma gentileza urbana, cercando a árvore que já estava lá com uma estrutura em metal e um banco para quem estiver passando e quiser se sentar. Sempre tem gente.”
O andar térreo virou galeria de arquitetura, a Planta Baja, enquanto o primeiro pavimento abriga o ateliê de arquitetura Raddar, da qual é fundadora. Uma dezena de colaboradores faz check-in diariamente por lá entre livros, maquetes e equipamentos de proteção para canteiro de obras. No meio disso tudo, peças icônicas como uma edição limitada do Polochon, o porquinho rosa criado por Lina Bo Bardi, uma poltrona Wassily, de Marcel Breuer, e a luminária The Flos 265, de Paolo Rizzatto. Os outros dois pavimentos são seu apartamento com cara de casa – com direito a rooftop que emoldura, com paisagismo, a selva de pedra. “É um projeto de exceção. Você pode ter o escritório e a casa na mesma estrutura, sem que um interfira no outro.” Ali, moram ela, o marido, o empresário Jonathan Franklin, os dois filhos de 6 e 9 anos, além de Cosmo – o labrador que vive no elevador e parece uma estátua de tão familiarizado com o sobe e desce/abre e fecha. Em vez de espelho, obras de Paulo Bruscky, Traplev e mais lambe-lambes.
Criado de maneira industrial, o imóvel é de 1969, e guarda relíquias da época, como a marquise – hoje proibida nas construções. “Pouco se vê valor em estruturas como esta. Mas é uma coisa mágica. Não tem quem venha aqui e não fique encantado. Era um edifício funcionalista e sem nenhum capricho, sem valor arquitetônico.” O twist contemporâneo veio do revestimento impermeável desenvolvido por Sol, em tom pastel violeta e detalhes em verde-eucalipto com efeito fosco. Planta Baja é uma galeria multiúso com portas que se conectam à cidade. Em um futuro próximo, além de receber arquitetos e estudantes, deve incorporar uma cozinha para realização de eventos culturais. Sol já testou com um de seus restaurantes favoritos. A ideia vai vingar, mas demanda um tempo que, agora, ela não tem.
Ao chegar no primeiro andar, onde fica o office, é impossível imaginar que, no piso de cima, funciona uma casa com crianças pequenas. A escada conecta todos os pavimentos e desemboca na área mais reservada da propriedade, a partir do segundo andar. Ali, uma parede de madeira esconde as suítes, separadas por uma sala de TV e biblioteca, onde um iPad conecta as crianças com as vovós mexicanas ao toque de um botão. Na antessala, poltrona Edra, dos Campana, e obras de Marcelo Cipis e Louise Bourgeois. O pavimento superior abriga ainda sala, espaço para jantar, cozinha e varanda – todos os ambientes com muita luz natural, em um jogo de conexão e divisão. “Se uma coisa define esta casa, é a surpresa. Uma jornada de descoberta. É um caminho para muitas coisas em São Paulo. Todo mundo que vai descobrindo um andar, entra em um universo diferente.” Do tempo em que comandou o restaurante mexicano La Central, no Copan, guarda cadeiras que desenhou para o lugar. Elas envolvem a mesa onde a família toma café da manhã na varanda, cercada por uma rede preguiçosa, vasos e muitas plantas. A sala de estar não tem TV, a janela para o mundo são os livros – aliás, todos os pavimentos têm suas próprias bibliotecas, com obras de arquitetura, gastronomia e arte. No canto da leitura, a poltrona Eames divide espaço com o teclado das crianças. No centro de tudo, poltronas Shibui, da Marcenaria Baraúna, e a Bowl de Lina Bo Bardi, estão dispostas com a cadeira de Ludwig Mies van der Rohe, bem como o banco Mocho de Sergio Rodrigues. Obras de Marcelo Cidade, Cinthia Marcelle e Emilio Gañán adornam as paredes. A mesa de jantar Ovoo com cadeiras Wishbone, de Hans J. Wegner, abraça o espaço integralmente.
A cozinha também é fluida, dividida pela cortina dinamarquesa Kvadrat. A ilha central acomoda timidamente cadeiras Girafa, de Lina. “Acredito ter a maior biblioteca sobre Lina Bo Bardi de São Paulo. Nem o instituto tem”, ri. “É a arquiteta que mais admiro, não tem jeito.” Alimentos à vista e livros sempre à mão entregam a atração da família pelo fogão. A despensa, a fruteira e os utensílios ficam à vista para que as crianças sintam-se convidadas a provar os alimentos. Sobre a bancada de 6 metros em aço escovado, obras de arte entregam seus Brasis: urbano, indígena, rural de Minas Gerais, modernista. “São vários, não é um só.” Ela até já se sente “parcialmente” brasileira, pela seleção de arte com nomes como Daniel Jablonski, Maria Lira Marques, Bruna Canepa, Mauro Restiffe e Adriano Costa. “Cada dia, a alma da casa está em um lugar. Mas gostamos muito de cozinhar”, diz. “Lá em cima, também”, complementa Franklin, em breve passagem em meio à conversa. “Aos domingos, a gente cozinha. Põe uma grelha, recebe amigos, e acabavirando um open house.” É no rooftop que acontecem as reuniões, cercado por paisagismo e poltronas Loop Chair, de Willy Guhl da década de 1950, e um banco de inox de Mario Botta. A área coberta guarda tapetes de yoga e pesinhos em um canto, que divide espaço com o sofá-cama e lareira, e pode se transformar em quarto de hóspedes com cortina divisória. O outro lado reserva o escritório de Franklin, separado pelo espaço de leitura com poltronas, mesinha e mais livros.
O ateliê foi batizado de Raddar pelas siglas em inglês Research e Design (projeto e pesquisa). “Repensa estruturas existentes e esta obra é um exemplo disso. Sem nenhuma característica arquitetônica que valesse a pena recuperar, com criatividade, agora tem.” A casa de Sol tem coerência com seu estilo de vida e seu trabalho. “Meus filhos sabem que estou aqui, seja em uma reunião ou desenhando. Doeu o dente, quer corrigir a lição, chegou com um amigo? Estou aqui. Essa presença dá uma segurança. Sabem que a mãe está trabalhando, mas está sempre em casa. Vai fazer a diferença para eles, e sei do privilégio de estar próximo.”
Depois de ter ficado cerca de 10 anos no Instituto Bardi, responsável pela Casa de Vidro, e ter feito a curadoria do Pavilhão Brasil, na Bienal de Veneza, em 2018, este é o momento de respirar suas criações. Na reta final das obras do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, mais conhecido como Pacaembu, do qual seu escritório é o responsável, abraçar projetos que parecem impossíveis e viabilizá-los, pensando no desenvolvimento social em contextos urbanos é sua assinatura. “Recuperar espaços públicos ou privados abandonados é uma solução para São Paulo. É isso que me interessa. Seja como escritório, seja como discurso da profissão. Hoje, aqui, na Europa e no México, as cidades estão completamente construídas. Como arquitetos, temos de adicionar camadas, e não tantas formas.”









