
Walter Salles – Foto: Alile Dara Onawale
Chega aos cinemas nesta quinta-feira (07.11) o filme brasileiro mais aguardado do ano: Ainda Estou Aqui. A produção marca o retorno de Walter Salles (Central do Brasil) à direção, após 12 anos de pausa. Baseado na obra homônima de Marcelo Rubens Paiva, o filme narra o desaparecimento do engenheiro civil Rubens Paiva, pai do escritor, ocorrido em 1971, durante um dos períodos mais violentos da ditadura militar. Filmada sob a perspectiva de Eunice (Fernanda Torres), sua esposa, vivida magistralmente por Fernanda Torres, a história ganha uma intensidade única. O longa ainda traz uma participação especial de Fernanda Montenegro, que engrandece a produção.
O postulante do Brasil ao Oscar teve sua estreia mundial no Festival de Veneza, em maio, onde conquistou o prêmio de Melhor Roteiro para a dupla Murilo Hauser e Heitor Lorega. O filme também foi aclamado na Mostra de São Paulo, no último mês, recebendo o prêmio do público em sua estreia nacional. Fernanda Torres já aparece em algumas listas de possíveis indicadas ao próximo Oscar de Melhor Atriz. No entanto, mais que as premiações, a adaptação cinematográfica merece ser vista por retratar um dos períodos mais sombrios da nossa história recente, oferecendo uma reflexão profunda sobre o Brasil. Leia, abaixo, a entrevista com o diretor.

Foto: Divulgação
Harper’s Bazaar – Você conviveu com a família Rubens Paiva no início dos anos 1970, justamente quando começa a ação do filme. Quais são suas memórias mais marcantes daquele período?
Walter Salles – Conheci a família Paiva através da minha amiga Nalu, irmã do meio da família. Eles vieram morar no Rio, quando eu estava voltando a morar na cidade. Nalu me levou a conhecer Rubens, Eunice e seus filhos, Veroca, Eliana, Marcelo e Babiu, em 1969. Eu tinha 13 anos, e passei parte da minha adolescência na casa que a família Paiva tinha alugado no Leblon e que está no centro de Ainda Estou Aqui.
Por ali, passavam amigos da família, jornalistas, o pessoal da música, além da moçada mais jovem. Não havia distinção entre adultos, adolescentes, crianças, o oposto do que acontecia na minha casa. Foi lá que ouvi debates acalorados sobre a situação política durante a Ditadura, foi ali, também, onde encontrei pessoas que me marcaram até hoje, onde descobri a Tropicália. A casa dos Paiva, assim como o cinema, de maneira diferente, me permitiu entender que o mundo era bem mais amplo do que eu poderia imaginar a partir da realidade da minha própria família.
HB – Você ficou 12 anos sem filmar um longa de ficção. O que te motivou voltar à direção ao ler a obra de Marcelo Rubens Paiva?
WS – Não é sempre que surge uma história como Ainda Estou Aqui [risos]. Demora. No ponto de partida, havia o desejo de contar uma história que me acompanha desde a adolescência e que o livro extraordinário de Marcelo Rubens Paiva trouxe novamente à tona. Uma história apaixonante sobre uma família que se confunde com a história do país, dos anos 1970 até hoje.
HB – Um dos principais personagens de Ainda Estou Aqui é justamente a casa da família de Rubens Paiva. De que maneira cineastas que tratam da arquitetura em seus filmes te influenciaram nessa escolha? (Penso, por exemplo, em Michelangelo Antonioni e O Eclipse).
WS – Coincidentemente, Antonioni foi um dos cineastas que me levaram ao cinema, sobretudo por causa de Blow-Up, citado aliás no filme, ePassageiro, Profissão Repórter. Não são filmes centrados no microcosmo da família, ao contrário de Ainda Estou Aqui. Mas toda a relação entre os dois principais vetores do cinema, o tempo e o espaço, são para mim indissoluvelmente ligados ao Antonioni.
A casa que a família Paiva alugava no Leblon é realmente um personagem do filme. É por meio da casa que se sente a pulsação da vida no início do filme, e a ausência de Rubens depois que ele é levado ao DOI-CODI [orgão do governo]. Encontramos uma casa erguida exatamente na mesma década, no início dos anos 50, com os mesmos dois pisos, com uma distribuição interna muito semelhante à casa original. Nalu, irmã de Marcelo, tinha uma memória fotográfica da casa. Essa riqueza de detalhes ajudou o nosso diretor de arte, Carlos Conti (o mesmo de Diários de Motocicleta) a reencontrar o espírito da casa original. A despedida da casa, no final de 1971, é também a despedida de um estar no mundo de uma família, que fica marcada nos primeiros 30 minutos do filme.
HB – O filme trata de um período triste e duro da história recente do Brasil, que já parece infelizmente um pouco esquecido, inclusive existem pessoas que não acreditam que a ditadura tenha de fato existido. Qual a importância de se contar essa história através do cinema em termos políticos?
WS – O filme oferece um reflexo possível do Brasil nos anos 1970, e acompanha a reinvenção de Eunice ao longo de quarenta anos. Começamos a pensar nesse filme para falar do nosso passado. E então o presente se tornou subitamente distópico, muito próximo daqueles anos de chumbo que já pareciam distantes. De certa forma, o zeitgest alterou a função da matéria fílmica.
HB – Você acredita que seu filme pode mudar um pouco essa percepção equivocada da história?
WS – O que podemos esperar é que o filme abre a possibilidade de entender melhor quem nós fomos em um momento tão complexo da nossa história, e com isso entender melhor as opções que temos no presente e, quem sabe, no futuro.

Foto: Divulgação
HB – Você acredita que o cinema pode ajudar a mudar o mundo?
WS – Acho que o cinema pode levar o espectador a fazer perguntas sobre o estado do mundo. Gosto da ideia de que um filme começa quando a luz do cinema se acende no final de uma sessão. Ou seja, quando o espectador começa a decantar o que viu. O que me levou ao cinema foi essa possibilidade de desvendamento do mundo que só o cinema oferece. Graças ao cinema, aprendi que o mundo era muito mais diverso e polifônico do que eu imaginava.
HB – Como foi voltar a colaborar com Daniela Thomas (co-diretora) neste novo filme? Como foi a participação dela desta vez?
WS – Daniela é tudo. Me salvou inúmeras vezes, foi fundamental para pensar todas as etapas do filme, do roteiro à montagem. É uma parceira genial de trabalho.
HB – Fernanda Torres já faz parte da sua família cinematográfica. Quais características dela você acredita que ela trouxe para a personagem da Eunice?
WS – Poder filmar novamente com a Nanda era um sonho que eu acalentava há muito tempo. Sua Eunice é o resultado de uma profunda capacidade de compreensão do outro, de uma sensibilidade à flor da pele e uma inteligência assombrosa. E uma fé inquebrantável no cinema como forma de expressão. Nanda confiou, acreditou na possibilidade de subtração como meio de chegar à essência do personagem de Eunice. Foi um presente enorme ter Fernanda Torres e Fernanda Montenegro [sua mãe] juntas em um mesmo filme. Não só para mim, mas para toda a equipe.
HB – Pela primeira vez, você dirigiu um filme de ficção baseado em uma história verídica, com personagens reais. Como documentarista, até que ponto você se preocupou em ser o mais fiel possível à realidade, e em quais momentos você se permitiu alguma liberdade narrativa ou estética?
WS – Diários de Motocicleta também tinha essas características. A diferença é que em Ainda Estou Aqui, eu tinha uma relação pessoal com a história. E para entendê-la melhor, entrevistamos todas as pessoas relacionadas com essa história, para ter o maior apanhado possível de fatos para alimentar o roteiro.
HB - Existe um grande buzz em torno do filme em relação à temporada de premiações, principalmente ao Oscar. Quais são suas expectativas em relação a isso, e o que você acredita que isso pode acrescentar ao filme?
WS – Olho para essa possibilidade da seguinte forma: esse filme, mais do que qualquer outro que eu dirigi, foi feito para oferecer um reflexo do Brasil, em um momento complexo de sua história, para o público brasileiro. Essa é a missão do filme. Depois vem os prêmios que o filme já recebeu, ou os que ele pode vir a receber. E todos têm a mesma importância, ajudam a enraizar um filme feito de forma essencialmente independente.

Selton Mello e Fernanda Torres, do elenco, com o diretor Walter Salles – Foto: Alile Dara Onawale