
Alma Negrot (Foto: Victor Takayama)
Em tempos de vida acelerada (onde até a depressão tem pressa), Raphael Jacques toma seu tempo entre perguntas e respostas. O silêncio, às vezes, faz até parecer que a ligação caiu – ou que ele se distraiu com outro algo –, mas uma risadinha tímida, seguida de palavras calmas, bem refletidas, retoma o ritmo do papo. É tão persona quanto personalidade. Há uma década, está por trás (e à frente) de Alma Negrot, uma das mais místicas e misteriosas drag queens da cena queer nacional, que criou para expressar todas as suas formas de criatividade.
Aos 29 anos, performer, artista, maquiador e curador musical (sua maneira poéti
ca de interpretar “DJ”), me atendeu para falar das referências que compõem seu universo pessoal, a magia de ser queer e a história de como saiu de casa para brilhar na noite.
Guilherme de Beauharnais – Raphael ou Alma?
Alma Negrot – Nossa… nem eu sei! (risos) Sou tão confuso com isso. Quando falo do meu trabalho, uso maneiras neutras. Todo mundo me conhece como Alma. Minha drag, enquanto arte, é sempre no feminino, mas agora pode ser no masculino.
GDB – Combinado. Aliás, na sua tour recente pela Europa, como DJ, você se autodescreveu como uma “show girl satânica”. Também já escutei “pin-up dominatrix”. Me explique isso?
AN – Ah! (risos) Algo muito especial na minha trajetória e na minha descoberta enquanto performer é que nada é sobre uma forma fixa ou específica. Tudo é uma metamorfose, é “risomático”. Considero a Alma o trânsito de tudo aquilo que eu sou. Toda imagem é arte quando ela carrega um discurso. Uma imagem é forte quando carrega referências sólidas de lugares muito distintos, únicos. Quanto mais único, mais especial. Tenho referências do punk dos anos 1980 ao blues, rock e o Butô, a dança contemporânea japonesa. Minha cabeça é uma grande salada de frutas… com glitter!
GDB – E onde entra o lado dominatrix?
AN – Descobri ele recentemente. O mais especial de uma performance é quando ela quebra expectativas. Quando surge essa pin-up andrógina, show girl satânica, toda pintada de vermelho no palco, na dança ou em um trabalho de curadoria musical, é algo que não se espera. Na minha performance, eu não sou nem humana. É um lugar de criatura fictícia, de brincar com lados etéreos, místicos, sexuais… são os antônimos. Sou meio Ney Matogrosso nesse sentindo.
GDB – Como?
AN – Nunca “aquendei” para fazer um look feminino. O pau está sempre lá à mostra. Eu gosto desse tipo de irreverência e a imagem da pin-up fala muito sobre isso. Foi a primeira figura feminina em revistas para consumo masculino e, de repente, surgiu a Bettie Page com um chicote, dando no lombo dos bofes. Subverteu toda lógica do expectador e da modelo!
GDB – Sua arte também desafia muito essa binariedade toda acerca dos papéis sociais e culturais de gênero.
AN – A Yoko Ono costumava dizer que a função do artista não é criar, mas mudar o valor das coisas. Também dizia que “a arte é um peido” (risos). Quando a descobri através do Hélio Oiticica, anos atrás, muita coisa mudou para mim. Percebi que está tudo bem ser uma maricona, ter os meus lugares de conforto e as minhas referências, que vêm bastante da cena queer dos anos 1960 e 1970. Gosto de sentir que o mesmo sangue que corria nas veias do Dzi Croquettes (grupo artístico brasileiro que, entre 1972 e 1976, desafiou a ditadura com apresentações sobre sexualidade e questões de gênero) permanece comigo. Ser queer foi e é uma forma de rebeldia, resistência. É uma arma que inspirou muito a moda, a cultura, o feminismo, o cinema… Nesse sentido, não dá para esquecer o impacto de figuras como David Bowie, Secos e Molhados, Elke Maravilha…
GDB – Cássia Eller, seu “cantor favorito” (risos).
AN – Dona Cássia, maravilhosa!
GDB – E a Madonna, nos mictórios do Warner Grand Theather da Califórnia, em 1989.
AN – Essa é a imagem mais importante da minha vida. É uma foto do Herb Ritts e eu a vi pela primeira vez aos cinco anos, em um encarte do The Immaculate Collection da minha mãe. Olhava e pensava como aquilo podia ser tão errado e tão certo ao mesmo tempo. Madonna, vestida “de homem”, fazendo poses irreverentes e masculinas, era completamente diferente da Gisele Bündchen em uma campanha para vender joias. Fiquei muito impactado por aquela ousadia. Depois, descobri Grace Jones…

Alma Negrot (Foto: @iammarcelof)
GDB – Nessa ideia de que o artista deve mudar o valor das coisas, que valores você acha que precisam mudar?
AN – Acho que é mais sobre reapropriar e dar roupagens mais atuais às coisas. Pensando em fenômenos culturais, como o Carnaval, é impossível imaginar as mesmas “brincadeiras” de vinte, trinta anos atrás se encaixando aos dias de hoje. A cultura precisa se renovar porque isso é uma demonstração de evolução. Como tudo já foi inventado, o importante hoje é reencaixar valores de acordo com as nossas necessidades.
GDB – Comecei a nossa conversa perguntando sobre satanismo porque, da sua infância no interior do Rio Grande do Sul, você lembra dos dias que passava conversando com Laranjeiras, penteando milharais e fazendo mandingas com ramalhetes de flores. Seu primeiro contato com a obra de Arthur Bispo do Rosário também foi marcante. Ainda hoje, seu trabalho tem uma aura mística fortíssima. Qual é a fonte dessa magia?
AN – É engraçado. Minha família sempre foi muito crente e as proibições que me impuseram, como desenhar e fazer teatro, me moveram muito. Fazia tudo escondido. A ousadia me alimenta. Qual era a pergunta mesmo? (risos)
GDB – Magia. (risos)
AN – A magia está na paixão pela descoberta do novo. O tempo todo, precisamos estar nos apaixonando por aquilo que compõe o que somos. Ser artista é complicado. Eu mesmo fico desmotivado em vários momentos. Tive épocas em que a performance do corpo era o mais importante para mim. Depois, foi a criação da imagem.
GDB – E agora?
AN – Agora, é a música. Como artista multidisciplinar, minha magia está em não deixar a peteca cair.
GDB – Quando você diz que sua família era crente, penso imediatamente na Fernanda Torres falando que tinha “preconceito contra crente” (risos). Você tem preconceitos e tabus?
AN – Acho que todos temos (risos). Mais do que tabus, nosso problema queers no Brasil nasce de uma grande mágoa, um ressentimento, com os costumes de uma cultura e religião tradicionais e capitalistas. São as expectativas sobre os nossos gêneros e sexualidades que nos impedem de sermos acolhidos pelas nossas famílias. Se não correspondemos a isso, somos castigados, muitas vezes com violência. A minha família foi muito violenta e eu sofri verbal e fisicamente. Coisa de polícia! Tudo sempre em nome da moral e nunca sob um olhar ético. “Viados” são expulsos de casa em nome de Deus! (risos). Estou rindo, mas é triste.

Alma Negrot (Foto: Carlos Sales)
GDB – Você conseguiu se curar desses traumas?
AN – É um exercício diário. Durante muito tempo, lidei com isso através das minhas performances. Todo ano, na minha cidade, inventavam uma mentira sobre mim: que eu tinha transicionado, que estava me prostituindo, que eu tinha morrido… O dia em que eu “morri”, apareci nas escadarias da igreja toda montada, cheia de tules, como um fantasma. Encenei meu defunto! (risos)
GDB – A morte em arte!
AN – Sim! As pessoas ficaram chocadas. Foi um momento épico! A ideia mesmo foi tentar desvendar o mistério de como seria o meu cadáver, a minha alma penada. Deixei a pele totalmente branca, me cobri de rendas, pérolas e cristais… esse tipo de exercício me ajuda a superar algumas coisas. A arte está aí para isso.
GDB – Aos 15 anos, você foi expulso de casa e foi morar com um casal de amigas lésbicas. Como isso o influenciou?
AN – Tenho muita gratidão a todas as sapatonas do mundo. Esse acolhimento foi muito importante naquele momento traumático. Ainda assim, também foi muito libertador, não vou mentir. Saí de casa cedo, mas já tinha certa maturidade para fazer as coisas sozinho e, de toda forma, não foi uma grande surpresa. Eu sabia que isso poderia acontecer em algum momento. Depois, fiquei viajando de carona e morando em vários lugares, fazendo cursos e tudo o que eu queria. Foi uma época de emancipação. Foi difícil, porque eu era praticamente uma criança, mas eu lembro dessa época com carinho. É a essa rebeldia adolescente que eu recorro quando estou desesperançoso.
GDB – Por falar em infância e adolescência, você está com 29 anos. Na comunidade LGBTQIAP+, atravessar os trinta é quase sinônimo de velhice (risos). Você enxerga dessa forma? Tem medo de envelhecer?
AN – Essa é uma pergunta bem existencialista. Nem eu sei muito bem como desenvolver essa resposta. É uma grande questão a ser tratada na terapia (risos). Mas não tenho medo de envelhecer, acho chiquérrimo e até já me sinto uma pessoa meio antiga.
GDB – Por quê?
AN – Não sei… sou uma pessoa rabugenta (risos).
GDB – Se não tem medo de envelhecer, do que você tem medo?
AN – Da apatia. Tenho medo de parar de sentir as coisas, de estagnar.
GDB – Você começou a se montar ainda na infância, no porão da casa da sua avó e com as roupas antigas das suas tias. Não dá para ser mais underground do que isso! (risos) Na juventude, como foi que você entrou, de fato, nessa cena?
AN – Comecei a fazer drag com dezessete anos, em uma sauna de Porto Alegre…
GDB – Dezessete anos em uma sauna?! Esses lugares são “mais dezoito”, não? (risos)
AN – Era bem ilegal! (risos) O estabelecimento sequer estava escrito no cartão e aparecia o nome de um estacionamento. Era cheio de machos sigilosos e casados. (risos)
GDB – Ouvi dizer que até hoje é assim! (risos)
AN – Sim! (risos) Mas os shows de drag só aconteciam nesses lugares, saunas e dark rooms. Tudo era bastante diferente. Elas ainda eram figuras bastante marginalizadas e tínhamos poucas figuras contemporâneas como referência. Eu tinha uma vontade de apresentar essa persona para o público e, com alguns amigos, montamos um coletivo de performances na rua. Não era nada profissional. Usávamos roupas de brechó, saltos altos, cabelos de lã, papel, tinta guache… Era muito mais pela monstruosidade e pelo choque do que pela aceitação.
GDB – Qual foi a sua primeira grande performance?
AN – Foi há pelo menos oito anos, no Rio de Janeiro, na festa Mamba Negra. Ali, me apaixonei pelo universo da música eletrônica. Depois, quando vim para São Paulo, me tornei residente do evento e, por mais que eu tivesse hiatos, o palco se tornou um lugar de cura para mim.
GDB – Essa rotina noturna nunca o cansou?
AN – Às vezes cansa, dá preguiça. Mas tenho o cuidado de escolher lugares que façam sentido para mim. Além disso, no Brasil, a arte drag é extremamente desvalorizada e eu não me diminuo para caber no bolso de ninguém.
GDB – Muitos dos trabalhos que você já fez, como campanhas para marcas e produções para celebridades, a exemplos da Iza, Karol Conká, Criolo e Gabriel O Pensador, acabaram o lançando, também, para o mainstream. Isso não conflita com seu discurso de criar imagens contestadoras?
AN – É um grande problema para mim até hoje. Existem os artistas do público e os artistas dos artistas. No geral, as pessoas me atrelam muito à cena underground e isso me faz sentir em um limbo. Posso fazer coisas mainstream, mas esse não é necessariamente o meu lugar. É como revistas que me chamam para dar entrevistas, mas não para fazer trabalhos (risos).
GDB – Ai! (risos)
AN – Eu tenho uma resistência com trabalhos comerciais até hoje, mas venho quebrando isso. Quase sempre, os artistas com quem trabalho já são bastante irreverentes, com pensamento crítico… nada caretas!
GDB – Imagino que isso traga alguma forma de felicidade. Ao mesmo tempo, você já disse que ser feliz é quase uma hipocrisia. Ainda pensa dessa forma?
AN – Penso (risos). Eu tenho momentos de felicidade. Buscar as nossas potências e nos agarrarmos às coisas que nos deixam felizes é o mais importante. Porque, se depender da humanidade… (risos). Também há uma ideia muito tóxica de felicidade. É uma falácia. Mas, agora há pouco, eu estava até bem feliz fazendo uma pesquisa musical.
GDB – Aí você me atendeu e entrou em depressão! (risos)
AN – …
GDB – Você se considera politicamente engajado?
AN – Eu me mantenho informado, mas poderia ser mais ignorante! (risos) Talvez, assim, eu tivesse mais momentos de felicidade! (risos)
GDB – É a sina dos complexos!
AN – Acho que sim… Eu também dou aulas e estou escrevendo um curso chamado “O Corpo Moldável”, para pensar a caracterização e a maquiagem corporal como uma maneira de criar fantasias e realidades. É bem filosófico apesar de ser… maquiagem!
GDB – Mas sempre é. Para nós, é uma batalha explicar a profundidade daquilo que as pessoas consideram superficial.
AN – Eu estava mesmo reclamando no Twitter que um bofe hétero queria me explicar quem é Glauber Rocha (risos). Tem gente que acha que maquiadores são antas acéfalas.


