O racismo na primeira infância deixa marcas profundas. Em seu livro, a educadora Jussara Santos propõe caminhos para uma educação antirracista

Por Helena Gomes

Um livro nasceu da constatação da educadora Jussara Santos – tanto em pesquisas quanto na vivência em escolas e berçários –, de que bebês e crianças negras recebem menos afeto, menos colo, menos olhares. Desde os primeiros meses de vida, eles são vítimas de um racismo que se manifesta não apenas nas palavras, mas também na ausência de gestos: no cuidado negado, no carinho retido e no olhar desviado.

Ao observar a rotina das instituições de educação infantil, Jussara percebeu a diferença de tratamento entre negros e brancos. Quando uma criança branca sente medo, recebe colo. Quando ela é negra, muitas vezes é deixada no chão, com uma perna estendida do profissional como consolo. Meninas negras têm seus cabelos ignorados sob a desculpa de que são “difíceis” de pentear e, diante de um machucado, o cuidado é mais duro e menos afetuoso – como se aquela pele não merecesse a mesma ternura.

A realidade das mães é ainda mais complexa. Com rotinas, muitas só percebem essa hostilidade quando as situações se repetem ou quando seu filho começa a verbalizar o que vive. Mas o que se passa entre professora e bebê é, quase sempre, silenciado. A criança negra que não é acolhida pode desenvolver inseguranças, medo de explorar o mundo, atrasos na fala e na marcha. Sentir-se invisível compromete o corpo e a alma em formação.

Foto Stella McCartney Kids

Na educação infantil, o racismo nem sempre se mostra de forma explícita – mas está ali, repetido e disfarçado de casualidade. Para Andreia Pereira, coordenadora pedagógica da educação conveniada da prefeitura na zona leste de São Paulo, a discriminação racial começa cedo, geralmente nos primeiros dias de creche, e é praticada por profissionais que, mesmo sem perceber, carregam marcas profundas de um racismo estrutural. “Apesar da gravidade, nunca presenciei uma denúncia formal por parte das famílias. Acredito que as mães nem imaginam que algo tão brutal acontecem com os seus filhos. E, se percebem, talvez não saibam nomear”, relata. Segundo ela, os educadores também não costumam perceber o que fazem, mas o impacto é real. Quando a criança negra não recebe o mesmo colo e cuidado, ela naturaliza essa diferença. Cresce conformada, sentindo-se fora de lugar numa sociedade que insiste em dizer que ela não pertence àquele estrato. “E isso não afeta apenas as crianças negras: os colegas brancos também aprendem, por observação, que há uma hierarquia sobre quem deve ser assistido primeiro, quem merece mais acalento e quem representa o padrão”, enfatiza Andreia. “A educação infantil é um direito da criança e não apenas um suporte para mães que trabalham”, diz Jussara. E, nesse espaço, todo bebê merece ser visto, amado e protegido. A ausência de afeto, embora silenciosa, fala alto e, frequentemente, o que se chama de timidez é apenas o reflexo de uma infância não ouvida e esse impacto se estende à forma como a criança se relaciona com o mundo, afetando a autoestima, a confiança e o senso de pertencimento.

O livro “Democratização do Colo: Educação Antirracista Para e Com Bebês e Crianças Pequenas Não Propõe Fórmulas, Mas Caminhos” reconhece que o racismo está em todos nós e que fomos educados para naturalizar as desigualdades. Compreender essa herança é o primeiro passo para superá-la e a formação continuada, o estudo de autores negros, a empatia e o compromisso com a diversidade são ferramentas urgentes para criar ambientes mais justos. “Acredito que o racismo está presente em todos. Quando escolhemos não ser antirracistas já estamos sendo, mesmo sem perceber. O antirracismo exige intenção, assim como o racismo. Sempre há escolha”, afirma Jussara. Para ela, é preciso coragem e prática diária. Ainda assim, ela percebe avanços em iniciativas como a Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ), mas reforça que a educação ainda precisa de mais visibilidade e projetos mais efetivos.

A maternidade, embora não vivida diretamente por Jussara – que teve seu útero retirado de forma violenta e criminosa por médicos brancos –, está no centro do livro. Com respeito e escuta, ela sabe que não pode falar pelas mães, mas deseja que a sua obra funcione como um colo simbólico e um afago para aquelas que, apesar das dores, seguem batalhando por um futuro melhor. Ela espera que o livro chegue a essas mulheres tanto como denúncia como gesto de amor. Que as mães negras saibam que os seus filhos merecem acolhimento e que as professoras os enxerguem não como desafio, mas como oportunidade de construir infâncias mais felizes.

Jussara acredita que, mesmo sem poder evitar todas as dores do mundo, as mães podem proteger seus filhos com amor quando dizem o quanto eles são importantes. Porque o amor, diz ela, “é potência transformadora, e toda criança tem direito ao colo”.