
No desfile de alta-costura de inverno 2026, a Chanel transformou o Grand Palais em seu ateliê como uma homenagem aos artesãos que lá trabalham – Foto: Reprodução/Chanel
Durante a semana de alta-costura em Paris, entre desfiles fabulosos e débuts esperados, uma notícia discreta passou pelos bastidores da moda: Bruno Pavlovsky, presidente da Chanel, e Pascal Morand, que ocupa o mesmo cargo na Fédération de la Haute Couture et de la Mode, confirmaram em entrevista ao Le Figaro que está em andamento a preparação de um dossiê para que a alta-costura seja reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO.
Não é uma decisão repentina. É uma costura longa que remonta ao reinado de Luís XIV, passa pelos decretos de proteção na Segunda Guerra e segue até hoje, com um modelo de produção que envolve cerca de 13 maisons oficialmente reconhecidas, centenas de artesãos e uma regulação rigorosa. A proposta, segundo Pavlovsky e Morand, parte da ideia de que a alta-costura é uma “exceção francesa” que contribui para o prestígio global da moda de Paris e que, por isso, merece proteção institucional. Mas o que exatamente muda se a UNESCO aprovar esse dossiê?
Não há respostas definitivas, já que o pedido ainda será avaliado e depende da aceitação formal por parte da organização. Mas, se levarmos em consideração o que aconteceu com outras tradições reconhecidas como patrimônio imaterial — como a arte do flamenco na Espanha, o saber-fazer da renda de bilro na Croácia ou o ofício de costura tradicional na Palestina — dá pra entender o que vem aí.
Acesso a financiamento público e privado
Caso a alta-costura entre para a lista, passa a integrar o Plano de Salvaguarda da UNESCO. Isso permite que as maisons e suas instituições ligadas apresentem projetos para preservar arquivos, incentivar formação de novas gerações e até financiar inovações tecnológicas que mantenham as técnicas relevantes no presente. O recurso pode vir de governos, empresas ou da própria organização.
Proteção legal e institucional
Reconhecer a alta-costura como patrimônio cultural imaterial pode facilitar a criação de instrumentos legais para defender técnicas artesanais, acervos históricos, documentos e mesmo os saberes dos profissionais envolvidos nesse ecossistema. Isso também fortalece o papel de instituições como a Chambre Syndicale de la Haute Couture e a própria Fédération, ampliando seu alcance.
Reforço da transmissão de conhecimento
Um dos critérios da UNESCO para conceder o selo de patrimônio é a capacidade de transmitir o conhecimento para novas gerações. No caso da alta-costura, isso pode se traduzir na formalização de cursos técnicos, estágios em ateliês, convênios com universidades e até programas em escolas de moda voltados especificamente para os ofícios manuais, como bordado, plumas, alfaiataria e modelagem.
Maior abertura ao público e digitalização
Com o reconhecimento, cresce a pressão por tornar esse patrimônio acessível. Museus, exposições temporárias, arquivos digitalizados e até visitas mediadas em ateliê podem entrar na rota do turismo cultural. A alta-costura, que hoje é quase exclusiva de um grupo restrito de clientes e insiders, passa a dialogar mais com o público dentro e fora da França.
Posicionamento geopolítico
Por mais que a UNESCO não funcione como uma chancela de luxo, a adesão ao seu sistema reforça o lugar simbólico da França no mapa cultural global. Isso fortalece o soft power francês e insere a moda em um debate mais amplo sobre memória, tradição e identidade.
Visibilidade internacional e articulação cultural
Ao ser reconhecida como patrimônio imaterial, a alta-costura deixa de ser apenas uma prática restrita ao calendário de desfiles e passa a fazer parte de circuitos de cultura global. Isso pode gerar intercâmbios, colaborações e ações educativas envolvendo países com tradições semelhantes em costura, como Japão, Índia e Brasil, onde ofícios manuais também pedem reconhecimento.
Um novo papel para os ateliês
Se confirmada a entrada na lista da UNESCO, os ateliês podem se transformar em centros de conhecimento. Isso não muda necessariamente a rotina de produção das grandes maisons, mas coloca uma lupa sobre o trabalho das chamadas petites mains, as bordadeiras, alfaiates e plumariers que constroem a base da alta-costura. Pode ser uma virada na forma como esse trabalho é percebido e remunerado.