Por Tiago Sant’Ana

A água, onipresente nas bordas continentais, quase sempre aparece em propagandas de paraísos turísticos cujos mares e rios reluzentes encantam visitantes sedentos por um mergulho relaxante. No entanto, longe de uma imagem puramente idílica e comercial, a água traz consigo complexas narrativas investigadas por artistas em diversas geografias. Mais que um tema, as águas são utilizadas, aqui, como estratégia simbólica. Tornam-se espaços de inscrição da história e de disputa poética e política. Essas investigações variam desde imersões líricas e literais a trabalhos que investem em uma dimensão mais conceitual e especulativa sobre as paisagens aquáticas.

Oceanos: testemunha de saberes e traumas

Numa fotografia, vê-se um homem flutuando numa grande porção de água com tons de rosa. Sua posição, com braços e pernas confiados a uma levitação, demonstra uma postura de meditação e conexão com a atmosfera em volta. Em outra imagem, uma mulher de pele retinta emerge do mar encarando o espectador. Ambas as obras nos levam a um momento de reconexão com a natureza aquática – vista por muitas populações africanas como ambientes dotados de uma energia particular e capaz de estabelecer processos de cura e de autoconhecimento. De um lado, temos o brasileiro Ayrson Heráclito imerso no Lago Retba, no Senegal; do outro, Zanele Muholi mergulhando na costa sul-africana do Oceano Atlântico.

Água: Ayrson Heráclito

“História do Futuro – Corpo e Sal: o Capítulo da Hidromancia”, de Ayrson Heráclito – Foto: Ayrson Heráclito

Cada artista, a seu modo, traz a água como uma instância natural do sublime. É também do continente africano que partem as criações de Aline Motta e Mohau Modisakeng. A trajetória de Motta é marcada por uma busca por arquivos que permitem o cruzamento de histórias femininas da sua família com uma experiência coletiva maior: os processos de apagamento das populações africanas e da diáspora negra no Brasil. Por meio da imersão de fotos e documentos, Motta compõe um trabalho audiovisual baseado em revelações de personagens e suas narrativas, conectando o continente africano com o Brasil por meio das águas dos rios e mares de Lagos, na Nigéria, Cachoeira e Rio de Janeiro, no Brasil. O barco, elemento simbólico doloroso das travessias atlânticas forçadas, aparece na obra com sentido torcido, não como instrumento de separação e sim como uma travessia de retorno, em busca da ancestralidade.

Água: Aline Motta

“(Outros) Fundamentos”, de Aline Motta – Foto: Aline Motta

As embarcações também são investigadas pelo sul-africano Mohau Modisakeng. Em Passage, apresentada na 57ª Bienal de Veneza, o artista reúne três vídeos nos quais vemos pessoas deitadas dentro de barcos performando uma espécie de coreografia da resignação. Pouco a pouco, a água escura começa a se apoderar do barco, até que a embarcação submerge completamente, apagando a presença daquelas pessoas. Modisakeng chama a atenção para os processos de passagem de escravizadas que transitaram pelo Atlântico. A água, aqui, não se apresenta somente como um dado visual ou estético, ela é posta como uma testemunha de dores e traumas históricos.

Água: Mohau Modisakeng

“Passage”, de Mohau Modisakeng – Foto: Mohau Modisakeng

A piscina como espaço de disputa

Enxergar a água em sua dimensão política abre um grande leque de perspectivas e nos permite lidar (e estranhar) com imagens que foram plasmadas na história. Esse é o ensejo de Antônio Obá na obra Banhistas 3 – espreita, onde o artista pinta uma cena que, a priori, parece um retrato cotidiano, mas que, quando vista em detalhes, revela um cenário incômodo e com referências à história social recente. Na tela, vemos três meninos negros que nadam numa piscina enquanto são observados, ao longe, por um homem vestido com roupas sociais. Dentro da mesma piscina, um crocodilo boia no mesmo espaço das crianças.

Antônio Obá

“Banhistas 3 – espreita”, de Antônio Obá – Foto: Divulgação

A imagem causa desconforto. O momento de relaxamento, representado pela atividade de natação controlada, parece coexistir com a ameaça de um iminente ataque. A presença do animal observando os meninos, representada apenas com os olhos fora da água em direção ao público, reiterada com o subtítulo da obra “espreita”, parece representar uma lógica que afasta o direito ao lazer para as identidades negras. A obra de Obá é a citação de um fato histórico de segregação racial. Em 1964, Martin Luther King foi preso após almoçar no restaurante de um hotel onde só era permitido o acesso de pessoas brancas. Como protesto, alguns ativistas mergulharam na piscina de um hotel na Flórida, também restrito aos corpos segregados. Ao perceber que a regra foi violada, o gerente do local jogou ácido na piscina.

A presença da piscina se desdobra em outras telas de Obá, dando destaque para esta porção de água presa em propriedades privadas como espaços de conflito. A piscina, uma espécie de pequeno oceano privado, é um seguimento da arquitetura que funciona a partir do desejo humano de domar e conter a água para benefício próprio. Embora pareça um desejo inocente, banhar-se é um lugar de privilégios. E isso é ressaltado de forma mais direta no autorretrato de Paulo Nazareth, onde carrega uma placa com o escrito: “Negros na piscina”.

Paulo Nazareth

“Cadernos de África”, de Paulo Nazareth – Foto: Paulo Nazareth

Aparentemente simplistas ou descritivas, as palavras de Nazareth funcionam como uma afirmação performativa que reivindica acessos a bens, ao lazer e a uma vida mais digna pela população negra. Título de exposições e de livros, a imagem-expressão “negros na piscina” tornou-se, desde a década de 1960, um lema que representa um movimento de resistência. De maneira mais misteriosa e ainda assim alinhada às propostas de Obá e Nazareth, Calida Rawles representa uma sorte de pessoas negras nadando livremente em piscinas por meio de uma refinada técnica de pintura hiper-realista. Em O Espaço em Que Viajamos, a artista estadunidense pinta duas meninas negras, em vestes brancas esvoaçantes, submersas numa piscina. A água, aqui, distorce as proporções dos corpos das garotas em posição diametralmente opostas, sugerindo um movimento circular. Rawles sublinha, aqui, uma força coletiva que tem o poder de transformar as águas em instâncias também de libertação. Ao mesmo tempo em que investe no hiper-realismo técnico, Rawles fabula uma emancipação ainda não alcançada para corpos negros.

Calida Rawles

“O Espaço em Que Viajamos”, de Calida Rawles – Foto: Calida Rawles

(Re)imaginar mundos aquáticos

Justamente por essa realidade tão complexa que muitos artistas têm recorrido ao onirismo e à fantasia crítica para contar suas próprias narrativas. Na ausência de uma história inclusiva, e sem visões estereotipadas, a fabulação e o surrealismo vêm à cena. O filme Drexciya, da artista colombiana Astrid González que estará na próxima Bienal das Amazônias. González tece uma história em que revela uma nação formada por pessoas negras naufragadas durante o trânsito forçado entre África e América, que conseguem se adaptar e criar uma sociedade mais equânime e que valoriza as filosofias e modos de vida africanos.

Seja como objeto de fé, símbolo de traumas ou elemento que alivia o corpo e apazigua a mente, a água é entendida por esses artistas como lugar da transcendência e de transparência de tempos históricos. A água é conflito e também alento. A arte não apenas tematiza esse líquido vital, mais que isso, a distingue como fonte cristaliza que nutre a nossa permanência e refresca a nossa alma.