À frente da 36ª Bienal de São Paulo, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung propõe um olhar para a humanidade como prática: algo que se constrói na relação com o outro, com o tempo, com o planeta e com a memória – Foto: Vitor Jardim, com direção criativa de Kleber Matheus, direção de arte por Yasmin Klein, retoque Gabriella Prata, coordenação Mariana Simon, produção executiva Zuca Hub, produtora responsável: Claudia Nunes

É preciso pensar o mundo como verbo. Experimentar as possibilidades da ação, destruir algumas respostas, borrar fronteiras e negar categorias para reimaginar modos de estar e ser. Nascido em Camarões, com formação em biotecnologia médica e biofísica, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung assina a curadoria da 36ª Bienal de São Paulo e propõe uma exposição que olha para a humanidade como prática — algo que se exerce em relação ao outro, ao planeta, ao tempo e à memória.

Com passagens por quatro continentes antes de “aterrissar” em São Paulo, a partir desta sexta-feira (06.09), o projeto curatorial se inspira nas rotas migratórias dos pássaros para reunir 120 artistas no Pavilhão da Bienal e outros cinco na Casa do Povo. O poema “Da calma e do silêncio”, de Conceição Evaristo, inspirou o título da mostra, “Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática”, e anuncia que os caminhos sugeridos aqui são outros: sensoriais, coletivos, transversais. Ndikung fala à BAZAAR Man sobre humanidade e a beleza como gesto político.

À frente da 36ª Bienal de São Paulo, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung propõe um olhar para a humanidade como prática: algo que se constrói na relação com o outro, com o tempo, com o planeta e com a memória – Foto: Vitor Jardim, com direção criativa de Kleber Matheus, direção de arte por Yasmin Klein, retoque Gabriella Prata, coordenação Mariana Simon, produção executiva Zuca Hub, produtora responsável: Claudia Nunes

Beta Germano – Duas palavras no título da exposição chamam atenção: “humanidade” e “viandante”. Muitos artistas estão revendo a ideia de humanidade como entendemos hoje. Mas como “conjugar a humanidade”? Como e por que entendê-la como um verbo?

Bonaventure Ndikung – Não se trata de definir o que é humanidade, mas de praticá-la. Chinua Achebe afirma que nenhum ser humano pode ser humano sozinho. Pois a minha humanidade depende da sua humanidade e a sua humanidade depende da minha humanidade. Ser humano é agir com respeito nas relação. E isso vale não só entre pessoas, mas com outros seres também. Então, uma maneira de conjugar a humanidade é reconhecer o fato de que todos os seres têm capacidade de agir — as pedras, as plantas, as águas – e todos os seres precisam de respeito, assim como nós exigimos respeito. E respeito precisa ser conquistado.

BG – A ideia de viagem também aparece com força. O que esse movimento representa?

BN – A viagem, aqui, é mais poética do que literal. Como diz Conceição Evaristo, “nem todo viandante anda por estradas. Há mundos submersos que só a poesia alcança”. A humanidade que construímos claramente falhou. Então, a questão é: que caminhos ainda podemos trilhar como humanidade para ter acesso a uma outra humanidade? A autora diz que é por meio do silêncio da poesia. Então, pedimos aos artistas que nos ajudem a encontrar, a ouvir e a reconhecer esse silêncio.

BG – As rotas migratórias de pássaros ajudaram a guiar a curadoria, certo?

BN – Sim, eles nos ensinaram muitas coisas, principalmente metodologia. Nos fizeram refletir sobre como pensamos curatorialmente. Que metodologia usamos para fazer uma exposição? Não nos interessava ir para um único lugar e fazer uma seleção de artistas ou adotar uma construção geopolítica específica, com base no fato de que algo é “ocidental” ou faz parte do G7 ou da União Europeia. A ideia é, portanto, criar formas diversas de relacionalidade, atravessar geografias e apagar fronteiras como método.

BG – Você acredita que a arte pode ajudar a repensar este mundo em colapso?

BN – Acredito. James Baldwin escreve que o papel do artista é fazer perguntas para as quais já temos as respostas. Parece que o mundo está cheio de respostas, mas não sabemos as perguntas. Dizem que alguns seres humanos são superiores, que cabe a eles colonizar o resto do mundo, que é aceitável menosprezar todos os outros, impor todo tipo de sanções, rotular todos os tipos de proibições e tarifas econômicas, e assim por diante. Quais são as perguntas? Talvez os artistas possam nos ajudar a encontrá-las. E, no nosso caso, em particular, queremos entender a desvalorização do ser humano.

À frente da 36ª Bienal de São Paulo, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung propõe um olhar para a humanidade como prática: algo que se constrói na relação com o outro, com o tempo, com o planeta e com a memória – Foto: Vitor Jardim, com direção criativa de Kleber Matheus, direção de arte por Yasmin Klein, retoque Gabriella Prata, coordenação Mariana Simon, produção executiva Zuca Hub, produtora responsável: Claudia Nunes

BG – Os artistas devem, então, mostrar caminhos e possibilidades em outras realidades ou tempos? Teremos artistas pensando em inteligência artificial, biotecnologia, afrofuturismo?

BN – Sim, mas prefiro chamar isso de presentismo. Essas tecnologias já estão muito concretamente presentes. Além disso, na minha cultura, tempo não é linha — é espiral. Passado, presente e futuro coexistem e podem se sobrepor. Fiquei muito impressionado, por exemplo, quando Marielle Franco morreu e as pessoas fizeram cartazes dizendo “Marielle presente”. Ela segue presente justamente porque sua ausência é insuportável. Essa sobreposição me interessa.

BG – A bienal promoveu “invocações” em diferentes lugares do mundo. Como foram esses encontros? E como eles estarão na mostra?

BN – Pedimos para que as pessoas de cada região se engajassem conosco em suas próprias maneiras de praticar a humanidade. Então, em cada um desses lugares, escolhemos um conceito que acreditamos revelar, manifestar e expor a humanidade daquela área. Kinawa, em Marrakech, Gwo ka, em Guadalupe, Tarab, em Zanzibar, e Noh, em Tóquio — são práticas que misturam música, filosofia, espiritualidade e resistência. Todos esses lugares e conceitos têm ligação com a água. A água é o começo de tudo — do corpo, da civilização, da escuta. Foi bonito ver como essas experiências moldaram o projeto.

À frente da 36ª Bienal de São Paulo, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung propõe um olhar para a humanidade como prática: algo que se constrói na relação com o outro, com o tempo, com o planeta e com a memória – Foto: Vitor Jardim, com direção criativa de Kleber Matheus, direção de arte por Yasmin Klein, retoque Gabriella Prata, coordenação Mariana Simon, produção executiva Zuca Hub, produtora responsável: Claudia Nunes

BG – Você chama atenção pelo visual. Qual é sua relação com moda e estilo?

BN – Mais do que moda, me interessa a atitude. Cresci nos Camarões vendo minha mãe escolher o melhor sapato, o melhor tecido e mandar fazer minha roupa sob medida. Vestir-se bem era uma forma de dignidade. E a beleza tem um papel político. Até hoje, prefiro mandar fazer minhas roupas a comprar algo pronto. O gesto de fazer com as próprias mãos também me interessa — como arte.

BG – Sua fala me faz pensar nas fotografias de estúdio dos anos 1960 no Mali. Isso o inspira?

BN – Muito. Malick Sidibé e Seydou Keïta retratavam pessoas que queriam ser vistas com orgulho. Era sobre identidade, autoestima, futuro, pois uma nação estava sendo construída naquele momento. Quando fiz a Bienal de Bamako, convidei famílias a abrirem suas casas. Queríamos ver as fotos no lugar onde elas vivem — não em um museu. Isso muda tudo.

BG – O que o azul significa para você?

BN – É uma cor importante, por isso sempre esteve ligada à realeza. É o reflexo do céu na água. Mas eu não uso por isso, eu só gosto da vibração do azul. Aboubakar Fofana, um mestre em índigo, falou que, na cultura de onde ele vem, no Mali, existem 12 tons de azul. Começa do azul ‘do nada’ até o azul ‘da eternidade’. E eu acho isso realmente lindo.

BG – E os anéis que você sempre usa?

BN – Foram feitos por um ourives tuaregue de Dacar. Ele escolhe as pedras com base no que acha que preciso. Este é de lápis-lazúli do deserto do Saara; este outro, de labradorita — pedra de proteção. O que me atrai não é só a beleza, mas o fato de que essas pedras existem há milhões de anos. Elas carregam energia, memória e permanência. É como se dissessem: estivemos aqui antes de vocês e estaremos aqui depois.