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Não existe sensação comparável a entrar em um brechó e encontrar uma peça rara — vinda de uma época específica, assinada por um designer admirado. Quem é apaixonado por roupas vintage sabe bem do que se trata: tropeçar em uma raridade é como descobrir um tesouro escondido. Cada peça carrega uma aura única. Pensamos em quem a criou, em quem a vestiu, nos lugares e histórias que atravessou. De repente, aquela compra deixa de ser apenas consumo; torna-se encontro, memória, narrativa.
Esse interesse pelo exclusivo carregado de história vem ganhando força no Brasil em ritmo acelerado. Atualmente, o país deve movimentar cerca de R$ 24 bilhões até o final de 2025 e concentra mais de 118 mil brechós em funcionamento, de acordo com o Sebrae. O aumento de 31% no número de estabelecimentos nos últimos anos ilustra como o setor deixou de ocupar um nicho alternativo para se consolidar como parte de uma transformação cultural mais ampla, aderindo diversas classes sociais. Em um cenário em que a moda precisa dialogar cada vez mais com a sustentabilidade, a compra de segunda mão deixou de ser estigmatizada e passou a ser vista como escolha de estilo e de consciência, atribuindo às roupas um novo significado e um valor que transcende o consumo.
No site Ebay por exemplo, a bolsa Sanddle, Edição Aniversário Galliano Limitada Ásia Dragão, criada por John Galliano para a Dior nos anos 2000 chega a ser negociada por até 300 mil reais. Como obras de arte, essas peças traduzem não apenas exclusividade, mas também o espírito de uma época. O fenômeno ganha ainda mais força em momentos de ruptura: após a morte de Giorgio Armani, a procura por criações assinadas pelo estilista aumentaram. Enquanto as grandes maisons disputam atenção com novos diretores criativos em um jogo de cadeiras acelerado, o mercado de second hand cresce silenciosamente, amparado no desejo por autenticidade e permanência.
É claro que o valor mais acessível e o consumo consciente explicam parte desse movimento. Mas há algo além: a busca por significado. Roupas que guardam histórias despertam emoção e fascínio. Para entender melhor esse cenário, a BAZAAR conversou com João Braga, professor de História da Moda da FAAP, referência nacional no tema, que compartilhou a origem dos brechós e o impacto cultural do vintage.
HARPER’S BAZAAR BRASIL: Qual é a importância do mercado de second hand e vintage na preservação da memória da moda?
João Braga: Vintage é uma palavra inglesa que, traduzida literalmente, significa “vindima”, a colheita da uva para a produção de bons vinhos. Quando esse movimento começou, qualquer roupa de brechó era considerada vintage. Hoje, houve uma evolução: trata-se de roupas que tenham sido expressão de moda no passado. Não é qualquer tubinho, mas, por exemplo, um tubinho YSL, um tubinho Pucci. Algo que tenha sido marcante como expressão estética.
Para quem não entende do mundo da moda, a peça vintage está aí porque foi expressão de sua época. Mas, antes de usá-la, é preciso ter acesso à história da moda. Só assim é possível garimpar o que realmente foi expressivo. E, claro, há ainda o aspecto de preservação da memória: quando bem conservadas, essas peças tornam-se museológicas, servindo tanto para uso quanto para colecionismo — seja particular ou em museus.
HBB: Esse movimento pode ser entendido como uma forma de resgate cultural e identidade, ou é mais uma tendência de consumo?
JB: Acredito que é os dois. Vai depender do ponto de vista de quem consome: pode ser preservação de memória, pode ser apenas entrar na onda porque está em alta. O interessante é que o second hand dialoga diretamente com os valores da sustentabilidade, já que propõe um consumo menor e o aproveitamento do que já foi feito.
As pessoas pensam que sustentabilidade é apenas ambiental, mas ela se baseia em quatro pilares: ecoambiental, social, cultural e econômico. Investir em qualquer um deles significa investir em sustentabilidade.
HBB: O consumo de peças usadas ou o reaproveitamento de roupas já aconteceu em períodos anteriores? Poderia citar alguns exemplos históricos?
JB: Sim, a história do vestuário sempre teve essas peculiaridades. Quando jovem, eu usava roupas de primos mais velhos. Para mim, era tudo novidade. Isso era reaproveitamento, não havia ainda o apreço que existe hoje.
Historicamente, podemos citar meados do século XIX, em Paris. O Barão Haussmann, prefeito da cidade, iniciou uma grande reforma urbanística. As populações mais modestas foram deslocadas para regiões periféricas, e dali surgiu o mercado das pulgas, o Marché aux Puces de Saint-Ouen. Essas pessoas vendiam o pouco que tinham, inclusive roupas, para sobreviver.
Outro exemplo é o período posterior à Primeira Guerra Mundial, à Revolução Bolchevique e à gripe espanhola, que matou cerca de 50 milhões de pessoas — sete vezes mais que a Covid-19. Sobrou muita roupa usada, e um comércio se estabeleceu. Nos anos 1980, o brechó já era prática comum, mas só recentemente ele passou a ser valorizado como tendência associada à sustentabilidade.
Hoje, existe uma curadoria. Antes era pura necessidade, reaproveitamento ou manifestação política. Agora, há também a busca estética, a valorização histórica e cultural. O consumidor contemporâneo enxerga no vintage exclusividade e significado.

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HBB: E o que faz uma peça se tornar “icônica”? Quem a fez, o momento histórico ou quem a vestiu?
JB: Não acredito que sejam as figuras públicas que a tornam icônica. Para mim, é a soma de fatores: o criador, o momento histórico e a estética. Esses três elementos são determinantes.
HBB: Após a morte de Giorgio Armani, a busca por peças desenvolvidas por ele cresceu. Como você observa esse movimento?
JB: Isso acontece em qualquer área. Nas artes plásticas, quando morre um grande artista, suas obras se multiplicam de valor. Na moda, é a mesma lógica. Principalmente para colecionadores, mas também como forma de valorizar o trabalho de um ícone.

