Entrevistar Day Molina é sempre um privilégio – e a entrevista se transforma em conversa e aula logo nos primeiros minutos. Não apenas por toda a bagagem ancestral que a designer carrega com tanta força e orgulho, mas também pelo exemplo de reforçar o papel gigantesco que tem – o que, para muitas mulheres, vítimas do mecanismo machista da “síndrome do impostor”, não é nenhum sentimento cotidiano. “Nenhuma mulher quer se reafirmar o tempo todo, a gente poderia ter esse reconhecimento naturalmente. Mas acredito que parte do princípio de sabotem não é só interno, mas também coletivo quando abaixamos a cabeça. Não quero ser a primeira ou a única, mas quero, sim, aquilo que me cabe: o reconhecimento, a legitimidade. Para o sistema, é ideal que a gente desista. Se eu desistisse, não existiriam outros”, reflete a designer.

A lista de “primeiras” de Day é extensa: primeira criadora indígena a se apresentar em semanas de moda no Brasil, primeira a fundar um coletivo de moda indígena, pioneira em cunhar o termo #DecolonizeAModa e impulsionar uma discussão estrutural sobre representatividade no setor. Agora, soma-se mais um marco a essa trajetória: levar a Nalimo para desfilar em Paris.

No próximo dia 29 de setembro, a marca se apresenta no Runway Vision, plataforma global que se consolidou como uma das mais relevantes passarelas off-schedule da semana de moda de Paris. Em sua segunda edição na capital francesa, o projeto reúne estilistas emergentes de várias partes do mundo, ampliando o alcance criativo e comercial dessas narrativas. Para Day, porém, estar em Paris significa mais do que visibilidade: é sobre deslocar o centro da moda.

“A Nalimo em Paris significa descentralizar na prática a imagem criativa de moda. Significa descolonizar esses espaços que socialmente e politicamente não existiam pessoas como eu, com traços como os meus”, afirma.

Descendente dos povos Aymara e Fulni-ô, a estilista traduz ancestralidade em estética contemporânea, entrelaçando silhuetas volumosas e artesanias brasileiras a um olhar urbano e minimalista. Tecidos de algodão orgânico, palha de cabrobó, couro certificado de pirarucu e pigmentos naturais se transformam em peças que não são apenas roupas, mas narrativas visuais. “Eu sou o que o Brasil é: esse misto de histórias, de raízes e de territórios”, diz.

Mais do que estética, a Nalimo nasce de um pacto de Day com sua ancestralidade. A lembrança da avó costureira — que nunca se reconheceu como criadora de moda, apesar de ser — e a força matriarcal que atravessa quatro gerações de mulheres de sua família moldam sua visão criativa. “Hoje, eu entendo que é uma construção de uma narrativa que vem muito antes de mim. Só estou dando continuidade. Me sinto como guardiã desses saberes ancestrais.”

Esse compromisso também é político. Fundadora do primeiro coletivo indígena de moda no Brasil, Day lembra que sua trajetória é marcada por resistências constantes. “A moda não é feita de aplausos apenas. Quem cria moda, sabe os desafios de fazer um trabalho autoral sem apoio e patrocínio. A falta de incentivo em nosso setor é algo que precariza nosso ofício. Especialmente quando se trata de estilistas que constroem diariamente a cultura da moda nacional. O que eu faço aqui é visto lá fora com respeito e admiração. Mas o Brasil nem sempre valoriza o feito aqui, por nossa gente”, critica.

Essa contradição se materializa no próprio caminho até Paris: embora tenha recebido o convite para desfilar no Runway Vision, Day precisou organizar uma vaquinha virtual para custear os altos gastos da viagem. “Eu não quero sair de Paris endividada fingindo que está tudo lindo, maravilhoso como muitas pessoas fazem. Prefiro ser honesta e pedir ajuda. Compartilhem, apoiem, porque essa força coletiva é fundamental para que a gente chegue lá”, reforça.

Para ela, estar em Paris é também denunciar os contrastes de uma indústria que celebra a diversidade nas passarelas internacionais, mas que ainda falha em reconhecer a potência da moda indígena dentro do próprio país. “Eu não quero ser a primeira ou a única, mas quero aquilo que me cabe: reconhecimento e legitimidade. Para o sistema, é ideal que a gente desista. Mas se eu desistisse, não existiriam outros.”

A Nalimo, no entanto, é fruto da coletividade. Produzida 100% por mulheres, a marca carrega em sua cadeia produtiva o protagonismo feminino em todas as etapas: da costura à logística. “A indústria da moda me ensinou que o maior desafio não é estar onde eu estou. É permanecer. Permanecer relevante, permanecer forte, permanecer resiliente. E isso só é possível quando construímos redes verdadeiras de apoio entre mulheres.”

No dia 29, em Paris, o mundo vai conhecer mais de perto esse trabalho que desafia os moldes tradicionais e faz da moda um ato de resistência e permanência. Para Day Molina, é apenas mais um começo.