Por Paula Jacob

Joachim Trier tem se tornado um expert em fazer dramas com dilemas tão humanos que é impossível passar por seus filmes sem se sentir afetado de alguma maneira. O fenômeno anterior, A Pior Pessoa do Mundo (2021), já tinha deixado a audiência boquiaberta com a sua sensibilidade diante da volatilidade da vida contemporânea. Agora, com Valor Sentimental, ele atinge outro patamar a partir da relação entre irmãs e um pai ausente, mediada pelo cinema em uma metalinguagem poética sobre laços e memórias intergeracionais.

No centro de tudo, uma casa vermelha. Dessas antigas de madeira, construção clássica pré período de guerras na Europa. Uma que está na família de Gustav (Stellan Skarsgård) há gerações. Ali, bisavós, avós, filhos, netos e bisnetos circulavam e circulam em cômodos banhados pela luz natural da Noruega em brincadeiras, festas, jantares, conversas, sonhos e mortes (reais ou simbólicas). Nos flashbacks, sempre mulheres que cuidam e vivem, surtam e cantam. A casa muda muito, mas nem tanto, quando passa de mão em mão. Apresenta falhas ao longo dos anos, que são abraçadas na rotina. 

Mas o ruir das paredes acaba sendo reflexo também da passagem do tempo interior dessa família, culminando no fim do casamento do cineasta Gustav com a mãe de suas filhas. Ele, porém, abandona a casa com as três lá dentro e se muda para a Suécia. Ao crescer nesse contexto, a atriz Nora (a sempre excelente Renate Reinsve), filha mais velha, desenvolve uma certa aversão a conexões humanas mais profundas e encontra nos palcos um espaço para ser quem não se é (ou ser quem se é de verdade). Ela e a irmã, Agnes (Inga Ibsdotter Lilleaas), firmaram, então, um pacto de sororidade após o caos emocional dos pais para tentar fazer diferente.

O tempo passa. De volta para Oslo, o cineasta que há 15 anos não produzia nada, oferece o papel principal de seu filme mais íntimo e poderoso para a filha cheia de mágoas, que nega sem hesitar. A partir daí, os fantasmas de um passado mais que passado e de um mais recente se misturam em torno da dinâmica familiar que tem no centro diversas marcas profundas não resolvidas. Como a avó de Nora, que se matou em um dos cômodos da casa anos depois de ter sido torturada e presa durante a Segunda Guerra Mundial. Detalhes descobertos por Agnes, uma historiadora acadêmica interessada em compreender melhor o seu pai e essa sombra que o acompanha em silêncio.

Rachel Kemp (Elle Fanning) entra em cena como a promessa da indústria. Ao conhecer Gustav, ambos se conectam artisticamente e ele a convida para ser a sua tão idealizada protagonista. O trabalho de preparação é intenso, o roteiro muda para o inglês, mas a jovem atriz luta para conseguir compreender as entranhas dessa personagem – inspirada em eventos familiares. Sua presença também causa desconforto em Nora, que está em cartaz no teatro com uma peça-sucesso e não dá o braço a torcer para o pai. Ela diz que não pode trabalhar com ele “porque eles não sabem conversar”.  

Trier, com sua sensibilidade ímpar, brinca não só com a metalinguagem do cinema, como também com a metáfora da língua, para criar possibilidades de diálogos entre aqueles que se amam-odeiam. Mostra o quanto a arte pode ser poderosa para mediar sentimentos e trocas profundas, e também, quem sabe, resolver dilemas do não dito. Em Valor Sentimental, há muito mais coisas vibrando nas paredes que circundam os personagens do que os olhos podem ver. E isso faz do filme uma experiência tão densa que permanecer na sua superfície não é uma opção.

 

“Valor Sentimental” é destaque da programação do Festival do Rio, mas ainda está sem data de estreia oficial nos cinemas brasileiros