Imagem de Tatiana Bilbao. Foto: Reprodução

Por Amanda Ferber 

Em apenas cinco dias na Cidade do México, visitei alguns dos estúdios mais fascinantes. Entre conversas, croquis, maquetes e cafés compartilhados, fui entendendo por que acredito que a arquitetura mexicana contemporânea é uma das mais autênticas e verdadeiras da atualidade.

Num mundo cada vez mais pasteurizado pelas referências visuais da internet, em que o acesso democratiza mas também uniformiza, o México segue na contramão: preserva suas raízes, cultiva sua coletividade e mantém viva uma experimentação que nasce da matéria, da mão e do encontro.

O coletivo como forma de resistência

Um dos exemplos mais emblemáticos dessa prática é o Colectivo C733, criado em 2019. Nascido da união entre cinco escritórios experientes (Taller Gabriela Carrillo, TO Arquitectura, LABG, Vertebral e Israel Espín Arquitectos), o coletivo surgiu após um período de fortes abalos sísmicos no país, que deixaram diversas regiões em situação vulnerável. A resposta desses arquitetos foi se unir para atuar em projetos públicos e reconstruir o que havia sido afetado.

Hoje, o C733 segue desenvolvendo escolas, mercados e espaços cívicos, em comunidades que mais precisam. Um gesto que transforma o arquiteto em agente ativo, e não apenas passivo.  A beleza dessa iniciativa está não apenas nos edifícios, mas no gesto: cinco escritórios que poderiam disputar o mesmo território se unem para servir à população. Cada um oferece o que tem de melhor: onde um tem menos experiência, o outro complementa. Essa é, para mim, a essência do que a arquitetura deve ser: também um serviço público, uma prática que se coloca a favor do coletivo.

Como me disse o arquiteto francês Ludwig Godefroy, que vive há 14 anos na Cidade do México: “na América Latina, um desastre, na maioria das vezes, é o começo de algo; na Europa, um desastre é o fim de algo.”

O C733, de certo modo, é a materialização desse pensamento: o começo de algo.

Coletivo, social e sensível.

Generosidade como prática profissional

Outra experiência que me marcou foi a visita ao estúdio de Michel Rojkind, um dos arquitetos mais influentes do país, já reconhecido pela Forbes México não apenas como profissional, mas como figura transformadora da cena contemporânea.

Há alguns anos, Rojkind liderava um escritório com mais de 60 pessoas. Com o tempo, alguns colaboradores saíram para iniciar seus próprios projetos. Quando voltaram, pedindo para retornar, ele os encorajou a continuar por conta própria, oferecendo, em vez de uma vaga, uma parceria. “Vamos assinar juntos o próximo projeto”, disse a eles.

Esse gesto, que parece simples, é de uma grandeza rara. Revela uma visão genuinamente coletiva sobre a profissão: a de que formar, ensinar e colaborar são partes do mesmo processo criativo.

E é também um contraste com o que algumas vezes ainda vemos no Brasil: escritórios que não dão crédito a seus próprios colaboradores por medo de que eles ganhem visibilidade e deixem o escritório. Essa postura acaba denunciando uma visão hierárquica e pouco generosa, que enxerga as equipes como mera mão de obra executora, e não como parte essencial do pensamento arquitetônico.

No México, percebi algo diferente: uma cultura de compartilhamento, que entende que dividir o holofote é multiplicar as possibilidades.

Autenticidade e experimentação no processo

Se o coletivismo é o coração da arquitetura mexicana, a experimentação é sua alma. E talvez isso venha da própria cultura mexicana, que valoriza o artesanal, o feito à mão, o ancestral.

Em todos os escritórios que visitei, a maquete ocupa um papel central. Não como simples ferramenta de representação, mas como instrumento de pensamento. Vi isso com força especial no estúdio de Tatiana Bilbao, onde as maquetes estão por toda parte: sobre as mesas, penduradas nas paredes, no teto, empilhadas em estantes.

Há maquetes feitas de papel, de colagens, de concreto pigmentado. Cada projeto nasce e evolui a partir delas: da primeira ideia ao modelo final entregue ao cliente. Na “maquetaria” do estúdio, vi um acervo quase poético de testes de concreto colorido: tons terrosos, vermelhos, cinzas, roxos, esverdeados. A materialidade, tão presente na arquitetura mexicana, é experimentada ali em miniatura antes de existir na escala real.

Além das maquetes, o estúdio cultiva uma prática que me encantou: uma biblioteca de recortes, organizada em gavetas, com figuras humanas, vegetação, texturas, desenhos de diferentes estilos e escalas. Qualquer arquiteto da equipe pode abrir, escolher e compor colagens livres. Uma forma de projetar que valoriza o olhar subjetivo e o gesto manual, algo raro na era digital. Mas não no México.  Tudo isso revela uma cultura de trabalho que não separa o experimental do cotidiano: projetar é um exercício contínuo de curiosidade e liberdade.

No fim, o que mais me impressiona é perceber como os bastidores explicam os resultados. O lugar que uma prática ocupa, seja de destaque, de influência ou de reconhecimento, nunca é fruto do acaso. É consequência direta dos seus processos. E os processos que vi no México são transparentes, generosos e vivos.

Mesmo como uma outsider, eu já teorizava que a autenticidade mexicana vinha dessa valorização das raízes e da coletividade. Mas, nesses cinco dias de imersão, pude confirmar de perto: ela está também no modo de pensar, de trabalhar e de se relacionar. E eu espero poder voltar em breve, porque tenho certeza de que ainda há muito mais a descobrir sobre essa arquitetura que, mais do que construída, é compartilhada.

Amanda Ferber é fundadora e CEO do Architecture Hunter, plataforma de arquitetura e design com audiência global de mais de 3,5 milhões de pessoas.