
Geoglifos encontrados no estado do Acre, Brasil, 2022 – Foto: Diego Gurgel
Por Romulo Baratto
Como imaginar futuros possíveis em um planeta abalado por crises ecológicas e sociais? A Bienal de Arquitetura de Veneza 2025 propõe que abandonemos o discurso da mitigação para, enfim, aprendermos a nos adaptar. Intitulada Intelligens. Natural. Artificial. Collective., a mostra concebida pelo arquiteto italiano Carlo Ratti articula múltiplas formas de saber — do ancestral ao digital — para repensar o ambiente construído. No Pavilhão do Brasil, a proposta curatorial parte da mesma urgência. Em (RE)INVENÇÃO, os curadores Luciana Saboia, Matheus Seco e Eder Alencar evocam a arquitetura não apenas como prática disciplinar, mas como ferramenta de escuta e transformação diante de um mundo em suspenso. O trio faz parte do Plano Coletivo, grupo transdisciplinar formado por arquitetos, professores e pesquisadores envolvidos na articulação da arquitetura como ação socioambiental.

Eder Alencar, Matheus Seco e Luciana Saboia – Foto: Maressa Andrioli/Fundação Bienal de São Paulo
(RE)INVENÇÃO se constrói em dois atos, que atravessam tempos e territórios. O primeiro apresenta achados arqueológicos recentes na região da Amazônia, revelando formas antigas de ocupação que transformaram paisagens com sofisticação técnica e respeito aos ciclos naturais. Usando tecnologias de escaneamento a laser (LiDAR), pesquisas têm revelado uma malha de caminhos, aldeias, geoglifos e aterros que atualizam a ideia de mata intocada. “As florestas são as nossas pirâmides”, costuma dizer o arqueólogo Eduardo Neves, cuja pesquisa Amazônia Revelada foi central para o desenvolvimento do primeiro ato da mostra. Enquanto outras civilizações deixaram ruínas em pedra, os povos amazônicos manejaram a natureza como monumento. Isso “desafia nossa noção de patrimônio fixo”, comenta Eder Alencar, “a floresta, nesse sentido, é um patrimônio cultural, resultado direto da ação humana.” A segunda sala desloca o foco para o presente, reunindo 12 práticas contemporâneas que, mesmo em contextos adversos, operam transformações radicais a partir daquilo que já existe. O caso de Afuá, no Pará, por exemplo, mostra como uma cidade pode se organizar sobre palafitas, em diálogo com o ritmo das águas.

Vista da instalação no Pavilhão do Brasil na 19ª Bienal de Arquitetura de Veneza, parte da exposição (RE)INVENÇÃO – Foto: Andrea Ferro/Fundação Bienal de São Paulo
Já a Ocupação 9 de Julho, do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), em São Paulo, ressignifica um antigo edifício público abandonado por meio de ajustes técnicos e usos coletivos, revelando o potencial de transformação contido na arquitetura daquilo que está inacabado. Outro exemplo é o jardim do Instituto Central de Ciências da UnB, convertido em um experimento de paisagismo resiliente, adaptado ao bioma do Cerrado. A intervenção transformou uma cobertura dependente de irrigação constante em um jardim de espécies nativas, que florescem e secam conforme o ritmo das estações. A curadoria traz, ainda, o programa RENURB, liderado por João Filgueiras Lima (Lelé), que nos anos 1980 implantou sistemas de drenagem e escadarias modulares em comunidades de encostas em Salvador. Leves e de fácil instalação, as peças permitiram a participação ativa da população local, oferecendo soluções acessíveis e replicáveis para o saneamento básico em áreas vulneráveis. Não muito longe do Pavilhão do Brasil, outro projeto brasileiro, desenvolvido pelo Cacique Nixiwaka em parceria com o arquiteto Marcelo Rosenbaum, integra a exposição principal da Bienal, no Arsenale.

Arrimo Habitado – Restaurante Coati, realizado por Lina Bo Bardi e João Filgueiras Lima, 2014 – Foto: Joana França
Os trabalhos expostos não confrontam o ambiente: adaptam-se a ele. Mais do que soluções fechadas, são exemplos de inteligências coletivas que se articulam em resposta a condições específicas. Nesse sentido, o pavilhão brasileiro responde diretamente à chamada de Carlo Ratti, ao propor uma arquitetura que emerge da colaboração entre saberes diversos, o legado de populações ancestrais e a inventividade de comunidades urbanas que atuam hoje na linha de frente da adaptação climática e social. “A gente precisa recuperar isso — não como nostalgia, mas como diretriz para projetar, para transformar as cidades”, diz Matheus. O pavilhão não sugere um futuro idealizado, mas escava, mapeia e desenha possibilidades de reinvenção a partir do que já está aqui. Em tempos em que a cidade se revela ruína e a floresta, projeto, talvez seja hora de inverter as lógicas, redesenhar os pactos e, como diz Ailton Krenak, “pisar suavemente na terra”. Se o futuro é ancestral, talvez reinventar seja menos um gesto de ruptura do que de escuta: ouvir os ciclos, os corpos, os territórios — e, então, agir.