Camille Henrot

Camille Henrot – Foto: Maria Fonti

Por Ana Roman

Vinciane Despret, filósofa e psicóloga belga, nos lembra que conhecer não é extrair respostas do mundo, mas formular perguntas capazes de mobilizar o outro – humano ou não humano. O essencial é saber perguntar. E é por esta ética da interrogação que altera a percepção, que me aproximo da obra de Camille Henrot, artista francesa que apresenta sua primeira individual no Brasil, a partir de 13 de dezembro, no Instituto Bardi Casa de Vidro, em São Paulo.

Nascida em 1978, Henrot desenvolve um método de trabalho que define como “curiosidade de amadora”: aprender fazendo, admitir o desvio, o erro e a contradição como parte do processo e transitar entre campos sem reivindicar autoridade disciplinar. A infância entre os cadernos de desenho e a oficina de taxidermia da mãe, no Museu de História Natural, afinou seu interesse pela ciência, por diferentes formas de vida e pelos dispositivos que as classificam.

Formada em animação pela École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs, ela leva reflexões sobre movimento, ritmo e montagem para o bronze, a borracha e a tinta. No início da carreira, criou vídeos para a indústria musical, trabalhou em publicidade e foi assistente no ateliê do artista Pierre Huyghe, experiências que ajudam a compreender a articulação entre pesquisa, observação e sistemas de organização que atravessam sua poética.

End of Me

Escultura End of Me, apresentada na Liverpool Biennial em 2021 – Foto: Rob Battersby/Cortesia da artista

Em 2013, Henrot ganhou reconhecimento com o vídeo Grosse Fatigue, premiado com o Leão de Prata na Bienal de Veneza, e com o qual propôs uma narrativa sobre possíveis origens do mundo, construída a partir de arquivos do Smithsonian Institution. O trabalho sobrepõe imagens de coleções de história natural, catálogos científicos, ícones digitais e janelas de computador que se abrem e se acumulam na tela, como se o desktop fosse um museu em miniatura. O excesso visual expõe o impulso totalizante do conhecimento moderno – a tentativa de reunir tudo, classificar e dominar – e, ao mesmo tempo, suas contradições e colapsos.

O desktop, que nela se torna metáfora do museu e do inconsciente coletivo, reaparece em outras obras como estrutura de pensamento: simultânea, saturada, fragmentada.

Em The Pale Fox, de 2014, a artista propõe uma instalação que se assemelha a um quarto de estudos ou a um gabinete enciclopédico contemporâneo, onde objetos, livros e vídeos compõem um diagrama da vida em expansão. O acúmulo de materiais não visa a erudição, mas a vertigem: cada tentativa de dar sentido ao mundo é também uma maneira de perder o controle sobre ele. Nas esculturas em forma de telefones da instalação Bad Dad and Beyond, de 2015, Henrot investigou a relação de dependência entre humanos e tecnologia, revelando como mecanismos de vigilância e de modulação comportamental podem estar disfarçados de interfaces de assistência. O público atendia os aparelhos e navegava por diálogos absurdos – ora íntimos, ora grotescos – em que a figura paternal se deslocava para qualquer sistema de autoridade (algoritmos, corporações, plataformas), que organiza e tutela, transformando o cuidado em forma de controle.

Camille Henrot

Escultura da instalação A Number of Things. Obras inspiradas em manuais de etiqueta, ábacos e cães brincam com as convenções sociais e as fronteiras entre a civilização humana e a natureza – Foto: Sebastian Stadler/Cortesia da artista

Nos últimos anos, a pesquisa mirou na domesticação e educação como sistemas que modelam corpo, afeto e conhecimento. Na mostra A Number of Things, ela organiza um ambiente no qual regra e exceção se tocam. Logo na entrada, um grupo de cães amarrados a um poste, modelados com lã de aço, chapas de alumínio, madeira entalhada, cera e correntes, condensa o tema do apego e do adestramento como tecnologia de cuidado e de controle. Ao lado, os bronzes da série Abacus ampliam o conflito entre jogo e disciplina: o instrumento de cálculo antigo se justapõe ao labirinto de contas dos brinquedos pedagógicos, gerando figuras altas, de curvas biomórficas. As contas empilhadas sugerem contagem de passos e compulsão por autoaperfeiçoamento, enquanto as ondas e cristas dos corpos escultóricos remetem à aprendizagem como ciclo interminável.

Outro tema em sua poética é o desenraizamento. Henrot desenvolve, desde 2011, uma série de flores-esculturas, que ocupará o centro da exposição no Brasil com curadoria de Samantha Ozer e Sophie de Mello Franco. Suas ikebanas, inspiradas na escola Sogetsu, investigam como ideias e afetos se traduzem em matéria. Em Is It Possible to Be a Revolutionary and Like Flowers, cada arranjo parte de um livro e converte sua estrutura em cor, peso, inclinação e ritmo. As flores, privadas de raiz, figuram deslocamentos e traduções culturais, renegociam pertencimentos e compõem uma biblioteca sustentada pela tensão. Cortar, apoiar, inclinar e hidratar são gestos de cuidado que expõem dependências, pesos e assimetrias; domesticar torna-se pacto provisório entre forma e ideia, organizar sem encerrar o sentido. Desse método derivam questões de migração, hospitalidade e tradução cultural, em diálogo com outras séries que evidenciam como todo sistema de ordenação promete sentido e produz fricções.

Na Casa de Vidro, as ikebanas dialogam com outros trabalhos, e o pensamento de Lina Bo Bardi orienta a leitura do conjunto. Henrot reconhece na arquitetura e nos dispositivos expositivos de Lina, um modo de pensar por arranjos e justaposições. Prateleiras, vitrines e mesas funcionam como abas de computador: uma gramática de janelas simultâneas em que interior e exterior, uso e exposição, vida e arquivo se atravessam. As coleções do casal Bardi ainda presentes no local e a própria casa revelam essa inteligência do olhar, uma forma de pensamento por justaposição e simultaneidade – um “desktop” anterior ao digital. Em lugar de uma ordem autoritária, forma-se uma arquitetura de relações que convoca respostas do espaço, dos objetos e de quem olha. Para Henrot, assim como para Lina, a casa não é cenário, mas um campo de escuta, em que cada elemento participa de uma rede de ressonâncias entre matéria, espaço e olhar.

Camille Henrot

Escultura de bronze da instalação Ábaco, apresentada na galeria Hauser & Wirt – Foto: Stefan Altenburger/Cortesia da artista

No filme In the Veins, ainda em desenvolvimento, ela reflete sobre experiência de viver sob extinção em massa e pergunta: por que amor e ternura não bastam para proteger aquilo que amamos, sejam animais, paisagens ou vínculos? Em diálogo com Grosse Fatigue e as flores-esculturas, o filme observa a escala doméstica como lugar de decisão entre anestesia e responsabilidade.

Para Despret, conhecer é criar condições de resposta. É assim que opera Camille Henrot: faz do arranjo uma forma de pensamento e de cuidado, convoca o mundo em vez de fixá-lo e transforma a composição em escuta. O que permanece não é a conclusão, mas a pergunta em estado ativo e a possibilidade de que o mundo responda pelos próprios meios.