Cultura: banco Kosuke Araki

Banco de arroz desenhado por Kosuke Araki – Foto: Divulgação

Por Julia Cavazzini

Nossa relação com o mundo começa pela boca. Um bebê experimenta o alimento antes de dominar palavras; descobre os objetos levando-os à boca antes de aprender a andar. Comer é nosso primeiro modo de entender o mundo — e segue sendo, na vida adulta, a base de muita coisa: encontros, celebrações e trabalho.

As culturas alimentares têm o poder de tornar concretos conceitos abstratos, transformando teorias em experiências palpáveis. Não à toa, diversas áreas do conhecimento têm explorado este universo para decifrar as estruturas das sociedades e vislumbrar futuros mais sustentáveis. Foi nesse contexto que a arquiteta Carolyn Steel criou o conceito de Sitopia (do grego sitos, “alimento”, e topos, “lugar”) — a ideia de um mundo moldado pela comida, da organização das cidades aos hábitos cotidianos. Apesar de parecer utópica, Steel afirma que essa realidade já existe, só que de forma desequilibrada: “Sitopia é uma forma de ver o mundo. A comida nos ajuda a compreender a complexidade da vida porque é material. Todos entendemos a comida intuitivamente. Descartes poderia ter dito: ‘Eu como, logo existo'”.

Um exemplo claro desse desequilíbrio é a forte influência do agronegócio nas esferas de poder, que resulta em políticas que ignoram a preservação ambiental e promovem a monocultura — modelo que reduz drasticamente a biodiversidade e padroniza consumo e produção. Um sistema que pode ter consequências drásticas. Paralelamente, o crescimento descontrolado do consumo de alimentos ultraprocessados — cuja produção excede as necessidades reais da população — gera impactos ambientais catastróficos. Diante disso, os designers do mundo inteiro criam peças-manifesto que sugerem consciência ecológica e cultural.

Fernando Laposse: milho e a cosmovisão do México

Na narrativa do Popol Vuh — livro sagrado dos maias quiché, um dos muitos povos originários do México —, o milho não é apenas alimento, mas origem: após tentativas fracassadas com barro e madeira, os deuses criaram os primeiros humanos a partir da massa do grão. O milho é, para os mexicanos, símbolo de identidade e vida, estando profundamente enraizado em sua mitologia e cotidiano. Ciente dessa carga cultural do alimento em seu país, Fernando Laposse transforma descartes de milho, abacate e agave em móveis singulares. O projeto “Totomoxtle”, desenvolvido com comunidades mixtecas em Santo Domingo Tonahuixtla, tem como foco a regeneração de práticas agrícolas tradicionais que, nos últimos anos, sofreram diante da expansão massiva do agronegócio. Laposse oferece fonte de renda para agricultores em situação de vulnerabilidade, contribui para a conservação da biodiversidade local e investe em alternativas de segurança alimentar para as próximas gerações. Ao invés de seguir com a escala industrial de consumo de milho como commodity, o designer resgata o ingrediante como ferramenta criativa, política e econômica e ressalta a sensação de pertencimento.

We+ e Kosuke Araki: alga, arroz e o cotidiano alimentar no Japão

No Japão, a palavra “gohan” pode significar tanto arroz cozido quanto refeição — o que revela a centralidade desse alimento na cultura local. Mas o arroz não é o único ingrediente onipresente no país: as algas, apreciadas por seu sabor umami e alto valor nutritivo, fazem parte da alimentação diária, figurando a relação íntima entre os japoneses e o mar. O estúdio We+, formado por Toshiya Hayashi e Hokuto Ando, atua em duas frentes: uma que investiga formas de coexistência entre humanos e natureza, enquanto a outra busca reverter os excessos da produção industrial, aproximando-se das origens culturais e do fazer artesanal. Em projetos como “Algae”, eles transformam algas marinhas — como o nori e o kombu — em pigmentos naturais e bioplásticos, criando uma ponte entre herança alimentar e soluções ecológicas.

Paralelamente, Araki ressignifica o arroz como matéria-prima de peças efêmeras no projeto “Anima”. Nessa série, grãos descartados são unidos por uma cola orgânica para formar um material biodegradável, o RRR (Rice-Reinforced Roll), para criar móveis que se decompõem naturalmente. Araki afirma que a comida não se limita ao consumo: ela é vida. Tanto ele quanto We+ compartilham uma compreensão cíclica do design — um fazer que não se encerra em si mesmo. Se as algas evocam o vínculo ancestral do Japão com o mar, o arroz expressa a identidade agrícola. Enquanto o We+ propõe alternativas ecológicas aos sintéticos, Araki emprega o próprio alimento como suporte para repensar o ato de comer. Embora distintos na forma, os trabalhos convergem na proposta de transformar ingredientes cotidianos em reflexões sobre consumo, memória e regeneração.

Cultura: peças We+

Detalhes das peças feitas a partir da pesquisa de algas do We+ – Foto: Divulgação

Jorge Penadés: azeitonas e o design enraizado na Espanha

A Andaluzia, no sul da Espanha — terra natal do designer Jorge Penadés —, é a maior produtora mundial de azeite, respondendo por 20-25% da produção global e 80% da espanhola. No entanto, as raízes e os troncos das oliveiras são descartados pela indústria, por serem irregulares e difíceis de usar em produção em massa. “Essa madeira acaba sendo usada como combustível de baixo valor”, conta Penadés.

Durante os anos de pesquisa, Penadés mergulhou na cultura do azeite andaluz e passou a investigar os rejeitos da olivicultura como potência criativa. Ao trabalhar com as raízes rejeitadas, o designer propõe uma inversão de valor. O que desagrada a lógica da produção em massa, por sua forma imprevisível e difícil de padronizar, torna-se justamente o que confere caráter único e expressivo às peças. Seu trabalho não apenas valoriza técnicas locais, mas também revela os desequilíbrios ambientais que moldam nossa relação com o consumo do alimento e o cuidado com a terra.

Cultura: mesa Fernando Laposse

Detalhe da mesa de Fernando Laposse criada com palha de milho – Foto: Divulgação

Monterraro: café e herança do trabalho no Brasil

Segundo o IBGE, o Brasil produziu em 2024 mais de 59,1 milhões de sacas de café de 60kg, um aumento de 3,7% em relação a 2023. O café é, hoje, um dos principais produtos da cesta básica do brasileiro e virou um dos principais símbolos nacionais, sendo um elemento estruturante da história do país. O escritório Monterraro, de Antonio Crestani e Pâmela Oliveira, resgata esta história ao valorizar o café como matéria-prima. Nas coleções Estalactite, Baía e Pino, os designers exploram a cor e a textura do alimento em diálogo com a madeira e desenvolvem alternativas eco-conscientes de mobília.

Mas o estúdio vai além do simples uso de materiais biológicos: a dupla propõe uma reconfiguração das relações entre cultura, matéria e ecologia, utilizando elementos enraizados na história e cotidiano. Tanto o café quanto a erva-mate, também presente em suas pesquisas, são ingredientes fundamentais da cultura alimentar da classe trabalhadora, por serem substâncias que estimulam, aquecem e acompanham longas jornadas de esforço e encontro, nos campos, nas fábricas ou nas cozinhas do país.

Design como cultivo, comida como projeto

Estes designers se colocam em sintonia com a perspectiva de Sitopia de Carolyn Steel. Para ela, reorganizar nossas sociedades em torno dos ciclos alimentares pode gerar formas mais sustentáveis, justas e humanas de viver. Ao adotarem uma postura que valoriza o saber tradicional do colher, cozinhar e comer, e os vínculos com seus territórios, estes criativos nos lembram que há uma sabedoria nos ciclos da natureza, uma pedagogia do alimento e uma política nos ingredientes. E mostram que o design pode ser uma maneira de nos reconectar com a terra, com o tempo, com as outras espécies.