
Tássia Magalhães – Foto: Késsia Riany
O prazer da mesa pertence a todas as épocas — o título do menu degustação criado por Tássia Magalhães no Nelita diz muito sobre a forma como a chef desenha seus pratos. Ela vira clássicos do avesso reforçando a ideia de que, na gastronomia, tudo pode ser reinventado desde que o criador conheça bem as técnicas e narrativas históricas. Uma éclair, símbolo da confeitaria francesa, pode vir com um purê de ervilhas. Lembra da rabanada clássica do Natal? Aqui ela é servida com língua e batata. Tássia entrega o conforto da comida italiana e a sedução da culinária francesa com um twist contemporâneo que só uma criativa curiosa e corajosa pode oferecer. Tudo, claro, com sotaque brasileiro. Sua maior arma é equilibrar bem o dulçor, com toques ácidos e salgados, ao longo de toda experiência — criando pratos elegantes, mas com profundidade de sabor.
Ela queria estudar direito, mas se apaixonou pela gastronomia. Morou na Dinamarca, quando trabalhou no Geranium e no Noma, mas a primeira experiência no Brasil foi no italiano Pomodori. Entrou como estagiária e, quase 10 anos depois, saiu como proprietária do negócio. Aos 35 anos, comanda três business: o Nelita, o Lita e o Mag Market — sendo o primeiro o mais reconhecido. O estrelado Nelita tem apenas quatro anos, mas já ocupa a 26ª posição entre os melhores restaurantes da América Latina, segundo os jurados do 50 Best Restaurants.
O atual menu do Nelita (servido até maio de 2026) propõe um olhar provocativo sobre os modismos que marcaram — e ainda marcam — a história da gastronomia. “Hoje, com o Instagram, tudo parece bonito. Mas muitas vezes as pessoas não sabem como chegamos naquilo. Trabalho com meninas muito novas e sinto que a minha função é também ensiná-las”, reflete a chef. Tássia resolveu organizar, então, uma espécie de desfile em que cada prato traduz (de forma inovadora, claro) um movimento ou elemento que já dominou cozinhas e mesas.
Entre os snacks que apresentam técnicas de conservação, emulsões e bases clássicas da panificação, vale provar a truta levemente defumada com cenoura fermentada sobre massa folhada artesanal. É impressionante e surpreendente o frescor do alho-poró tostado na manteiga noisette e acompanhado de creme de castanha de caju e molho de coco e iogurte artesanal. Mas a maior estrela da noite é o ravioli recheado com tomates doces e fermentados. Coberto por ganache de foie gras e envolto por caldo de galinha, chega à mesa sob um cloche, um símbolo da alta gastronomia do século 18. Não à toa, ele foi apelidado pela chef de “solar”. Ela também evoca uma histórica e cultural brincadeira sobre a origem da massa, se da China ou da Itália, ao servir o dim sum recheado com compota de berinjela defumada.
Outro ponto alto é uma uma “homenagem” a Auguste Escoffier, considerado o precursor do conceito de menu degustação: a codorna finalizada com chocolate e texturas de cebola desmancha na boca. Escoffier era defensor de uma cozinha profissional sem mulheres — máxima contestada por Tássia desde que abriu o Nelita com uma equipe 100% feminina. “Acredito que a mulher na cozinha não precisa perder a feminilidade. Entendi isso depois de bastante tempo, antes achava que precisava ser mais macho do que todo mundo para me impor”, reflete. De fato, a delicadeza dos pratos são também um reflexo da cozinha aberta — quem senta no balcão tem o privilégio de acompanhar uma orquestra de meninas trabalhando, uma cena bem distante daquela imagem de uma cozinha tensa, em que todos falam alto. “Elas precisam se expressar, podem usar um lenço bonito, brinco, meia colorida [elementos proibidos numa cozinha tradicional]. Queria tirar o militarismo da cozinha, sem perder a ordem.”
O bar de vinhos Lita abriu as portas em setembro deste ano e, além de 500 rótulos de vinhos do mundo inteiro, a gastronomia não perde protagonismo, assim como os detalhes de cada ambiente. Destaque para a poltrona UP5, criada por Gaetano Pesce em 1969, produzida pela B&B Italia, que fica ao lado do piano. “Tive que importar diretamente da Itália porque queria a versão listrada e ainda não tinha no Brasil”, explica a chef. Também conhecida como Donna, a peça é um ícone do design feminista. Pesce recorreu à imagem da deusa da fertilidade, mas apresentou um corpo feminino aprisionado para questionar o sexismo e a dominação masculina, alinhando seu discurso aos movimentos da época. Tássia não queimou sutiãs, mas criou uma cozinha revolucionária com delicadeza, ousadia e transformação.




