Bob Wolfenson

Bonecos e deslumbrados (aluguei essa de Ibrahim Sued), não é só de glamour que vive a moda. Em plena quarta-feira, dia de jogo entre Palmeiras e Botafogo – que empataram –, enfrentei o trânsito até o estúdio de Bob Wolfenson no bairro da Lapa, em São Paulo. “Olha o carro da pamonha!”, ouvi chegando ao destino. Achei o máximo! Não é o tipo de trilha sonora que se escuta em fashion weeks. Já no endereço, fui recebido pelo próprio com um balde de pipoca em mãos: “Aceita?”. Recusei, com medo de me engasgar, mas já estava tonto com o encontro, organizado meio às pressas por motivos de agenda. Na entrada, uma foto colorida de Rita
Lee ao piano e, na sala em que nos sentamos para conversar, outra de Caetano Veloso com a sobrancelha arqueada [autografada]. É apenas um dos cliques icônicos do it-fotógrafo, que se soma aos demais espalhados por ali, como de Gisele Bündchen e alguns pares de suas séries famosas – Belvedere e Nósoutros são as mais imponentes.

Roberto Wolfenson, o Bob, ocupa o estúdio há pouco mais de 10 meses. É cinco vezes menor do que seu antigo, celebremente inundado duas vezes, mas ele não se sente claustrofóbico. “Ao contrário, sou feliz aqui!”, me garante. Aos quase 70 anos, que completa em setembro, se diz mais ativo do que nunca – e tem razão. Só neste mês, inaugura a exposição Instante Construído, na Galeria Mario Cohen, e, depois, embarca para o Peru no projeto de viagem-workshop Jornadas Fotográficas. Ainda em 2024, também publica um livro, em parceria com o jornalista Naief Haddad, sobre os imigrantes africanos em São Paulo. Enfim, incansável. Apesar do nome lendário, não intimida. De camiseta preta, calça verde-militar e óculos grossos, me oferece um copo d’água, puxa uma cadeira e se senta de costas para uma estante coberta de livros, com obras de Richard Avedon, Félix Nadar, Irving Penn…

Sonia Braga – Foto: Bob Wolfenson

Bob Wolfenson: Tem certeza de que não quer pipoca?

Guilherme De Beauharnais: Obrigado.

BW: Então, me conte tudo.

GDB: Na verdade, hoje é o contrário. Você tem noção de que você é o Bob Wolfenson?

BW: Não (risos). A Fernanda Young tinha uma frase em que dizia não se sentir famosa para ela mesma. Tenho as mazelas, problemas, alegrias e virtudes como qualquer pessoa. Obviamente, não sou ingênuo ou modesto a ponto de dizer que não sou ninguém. Conheço meu lugar e o espaço que eu conquistei na fotografia brasileira. Sou uma página nessa história, mas só.

GDB: Quando foi que você se tornou essa página?

BW: Houve muitos momentos. O primeiro, aos 16 anos, com a morte do meu pai. Foi quando virei fotógrafo. Depois, nos anos 1980, fui para Nova York ser um dos assistentes do grande Bill King. Aprendi muito e voltei para o Brasil como um esboço de fotógrafo de moda.

GDB: E tem quem acredite que você não é brasileiro…

BW: Pois é! Meu nome mesmo é Roberto. Até uns 23 anos, assinei assim. O “Bob” surgiu com uma colega de escola que namorava um cara que estudou inglês comigo. Nas aulas, a professora me chamava de Bob e aquilo se disseminou.

GDB: Você gosta do apelido?

BW: Na época, eu achava bacana. Hoje, acho que preferiria ter mantido o Roberto para evitar esse tipo de confusão. Uma vez, uma mulher até me perguntou se eu conhecia o Bob Wolfenson (risos). Foi quando decidi unir os dois. É um nome sonoro, meio gringo, e funcionou porque o Brasil ainda tinha uma crise de colonizado. Agora, acho que é até o contrário, mas não dá mais para mudar.

GDB: Sei que ir para Nova York exigiu muitos sacrifícios da sua parte, incluindo vender o próprio equipamento. Depois de tanto esforço, por que decidiu voltar?

BW: Não decidi, fui decidido. No estúdio do Bill, tive um entrevero com outro assistente e ele me empurrou. Meu sangue subiu e eu saí de lá, talvez até prematuramente. Quem sabe, eu deveria ter ficado mais um pouco… Mas não me arrependo.

GDB: Já foi empurrado no Brasil?

BW: Nunca. Mas sabe que muito do meu trabalho vem da minha personalidade. Talvez, em outra língua, eu não fosse quem eu sou hoje.

Lais Ribeiro em clique de Bob Wolfenson para Bazaar Brasil de 2012.

GDB: Você viveu muitas épocas. São 70 anos de vida e 54 de carreira. Parece tudo isso?

BW: Não e sim. Sim porque, de fato, passou tudo isso. Não porque eu ainda estou ativo, mas o tempo mudou. Houve uma época em que todos os trabalhos de moda passavam por mim. Se não era eu, era o [J.R.] Duran…

GDB: Subiu à cabeça?

BW: Em algum momento, sim. Depois, baixou. É uma bobagem! Nunca fiquei metido. Quer dizer, muita gente deve ter me achado metido, sei lá. Sempre fui exigente e tive cuidado com meu trabalho, o que pode parecer “metidez” aos mais relapsos, mas penso que sempre fui fácil.

GDB: Antes de levar a sério a profissão, você brincou que se achava vagabundo. nunca teve vontade de voltar a ser?

BW: Não. A fotografia vive colada em mim. Nem nos meus sonhos mais delirantes da juventude eu poderia imaginar que me tornaria o fotógrafo que sou hoje. Não apenas no sentido do sucesso, mas da jornada. Nunca tive vontade de me aposentar. Pensando bem, acho que talvez eu esteja mais vagabundo, sim.

GDB: Por quê?

BW: Porque organizei meu tempo. Agora, não tenho mais tantas urgências. Esse espírito vagabundo aparecia nas minhas fotos e dava a elas uma espécie de beleza. A foto da Rita Lee, na entrada, é desse período, e eu incorporei o espírito da época. Tinha várias calças bocas-de-sino bordadas, usava camisas de linho abertas no peito, jaquetas de couro. Sempre fotografava com grande-angulares, de cima para baixo. Era o Zeitgeist pós-Blow Up, filme que formou uma geração de fotógrafos.

GDB: Eram bons tempos?

BW: Depois que eu comecei a fotografar moda, comecei a achar que meu trabalho naquela época era medíocre. Amadureci e aí percebo o quanto eram maravilhosas, do caralho. Até melhores que as de moda!

GDB: A moda te corrompeu?

BW: A moda me deu muita coisa e eu aderi, de uma certa forma, ao espírito dela. Hoje, acho que ela precisa de um pouco mais de mau gosto às vezes, sabe? Do lado vagabundo. (risos)

GDB: Você já disse que não concorda com a ideia de que um retrato captura a alma.

BW: Sim. Um retrato captura um encontro, digo e reafirmo. Essa história da alma é balela e acho que é uma tentativa de dar ao retrato uma categoria superior e um status extraordinário.

GDB: De arte?

BW: É uma arte, mas concordo com o Avedon que um retrato mostra apenas a superfície. Ele mostra a fricção de um encontro que, muitas vezes, pode até ser de extrema relevância, mas as pessoas insistem em querer atribuir profundidade a algo que não precisa disso.

GDB: É uma opinião forte. Esses sentimentos todos influenciam a sua fotografia?

BW: Não tenho nenhuma neutralidade psicanalítica. Minha personalidade e relação com o retratado estão sempre ali. É como em uma entrevista.

GDB: Um autorretrato, então, seria um encontro consigo mesmo? Quase masturbatório, não?

BW: Eu gosto do autorretrato no sentido narcísico. Até prefiro os meus autorretratos do que os retratos que as pessoas fazem de mim.

GDB: Você é controlador?

BW: Comigo sim. Eu controlo minha expressão e me retrato como eu acho que sou. As pessoas me fotografam fazendo careta, posando como um romântico… e eu não sou nada disso!

GDB: Seu acervo tem quase 350 mil registros analógicos e 700 mil digitais. É difícil fazer seleções? Pergunto porque, recentemente, você disse que não ligava para ele.

BW: Muito! Não sabia nem onde ficavam as fotos,mas sempre tive alguém trabalhando no estúdio para cuidar dos arquivos. Hoje, tenho consultado tudo mais frequentemente, especialmente porque, aos 70, as pessoas querem exposições. Até encontro coisas que nem lembrava que tinha feito!

GDB: Você já disse que um bom retrato é uma espécie de milagre. tem algo de religioso no seu trabalho?

BW: Não… sou agnóstico. Um estúdio reúne tantas injunções que, no fim, o fotógrafo acaba sendo um grande administrador. O set é um lugar de muitas opiniões e encontrar o resultado certo é uma tarefa milagrosa.

GDB: É sempre o resultado certo?

BW: Não, mas o tempo é aliado da fotografia. O retrato ganha outras dimensões com os anos.

GDB: Algumas boas, outras ruins. você mesmo diz que seu trabalho para a playboy se tornou algo dúbio. “Machista”, para usar suas palavras.

BW: Houve momentos machistas. A revista mesmo era um poço deles. Mas era tão normalizado que nós não percebíamos. Sexualidade, identidade e feminismo são termos que só ganharam destaque agora. Antes, a foto de uma mulher pelada servia para o homem ficar com tesão, bater punheta… E eu era o vetor da história.

GDB: Era excitante para você também?

BW: Eu me sentia invejado. Muitos homens me diziam que eu povoei os sonhos deles, fiz sua juventude. Eu seguia a cartilha da revista: duas fotos de bunda, três fotos de peitos… Um pouco ridículo, mas existem trabalhos ali que, de um jeito único, se tornaram especiais. Eu era escolhido pelas mulheres que seriam fotografadas e elas decidiam tudo. Era uma espécie de empoderamento naquele meio de objetificação.

GDB: Exemplos?

BW: Maitê Proença, Nanda Costa, Fernanda Young, Carol Castro…

GDB: E homens pelados? Interessavam a você?

BW: Eu fotografei nus masculinos também. Obviamente, não para a Playboy. No estúdio, alguns assistentes até iam embora deprimidos com os modelos porque se sentiam humilhados pelo tamanho do…você sabe. (risos)

GDB: pergunto porque a moda e a arte têm tantas nuances homoeróticas… até o Caetano Veloso disse que namoraria você se fosse gay! Ele seria um bom partido?

BW: Nós tínhamos uma brincadeira quando nos conhecemos. Demos uns beijos e… (celular toca). Esses caras de novo! Enfim, passei minha vida cercado de amigos e colegas gays e eu adoro porque o humor e a visão de mundo deles são únicos. Só me chamavam de “a Bob” (risos).

GDB: O que você acha da nova geração de fotógrafos?

BW: Fotógrafo de moda, em geral, tem que ser jovem, porque está antenado às novidades.

GDB: E os velhos?

BW:  Eles são o clássico. Fazem o elegante, o bacana, o bem-feito… Têm toda a técnica e, por isso, têm o seu lugar. Mas o pulsar está nos jovens.

GDB: Hoje, todo mundo é meio fotógrafo com o celular?

BW: Eu tenho uma teoria… Não basta fotografar para ser fotógrafo. É preciso ter estilo, pacto com a audiência, técnica, conteúdo, repertório.

GDB: E saber lidar com as demandas. você sofre pela expectativa que os outros têm com o seu trabalho?

BW: Todo artista sofre com isso. Fazer uma coisa boa não é difícil. O difícil é fazer muitas. Todo cineasta, por exemplo, tem filmes bons e ruins.

GDB: Nunca quis ser cineasta?

BW: Não sou vocacionado e nem tenho paciência para grandes temas. Prefiro as coisas menores. Além disso, a fotografia tem uma coisa superior. Existe um espaço entre uma foto e outra que você pode preencher com a imaginação. No cinema, geralmente, está tudo entregue.

GDB: O que ou quem não fotografou ainda, mas gostaria?

BW: Nunca sei qual é o meu próximo passo. Meus temas são mistérios para mim mesmo. A maioria das coisas surge a partir de ideias fortuitas, encontros e acasos. Quem procura muitos temas relevantes, altruístas e necessários geralmente não encontra nada. A chave é esperar.

GDB: você também já disse que nunca teve vocação para fazer do seu trabalho uma ferramenta política.

BW: Eu nunca fui ativista político no meu trabalho, mas cresci em uma casa comunista. Também já fotografei figuras desse meio.

GDB: Como o presidente Lula. Aliás, o que você tem achado do atual governo?

BW: Eu simpatizo muito. Acho tudo bom e quando falam mal eu fico meio puto.

GDB: Meio puto ou muito puto?

BW: Meio. (risos) Ele também não é Deus, mas acho mais humano e se parece comigo. O governo Bolsonaro não tinha nada a ver comigo. Era horrível, principalmente no comportamento.

GDB: Falando nisso, a moda adora mudar de padrões. Como foi para você cruzar por tantos padrões de beleza?

BW: Eu passei por muitos espíritos de época. Antigamente, até os anos 2000, o padrão da modelo era: magras, estreitas, muito altas, andróginas… Hoje, tudo é mais pulverizado. Acho que não há mais um padrão e eu aderi a isso.

GDB: Por sobrevivência?

BW: Por crença. Eu aprendi. Nunca fui um homem fechado para mudanças, sou permeável.

GDB: O que você faria se não pudesse mais fotografar?

BW:  Aos 70 anos, eu não faria nada. O importante na vida são outras coisas. Sou muito ligado no que eu faço, mas não seria o fim do mundo. Eu ficaria com os amigos e iria passear se eu tivesse dinheiro para isso.

GDB: Com décadas de carreira, não ganhou o suficiente?

BW: Eu tenho algum dinheiro, claro, mas não sei se tanto assim para parar totalmente. (risos).