
Celine, primavera-verão 2025 (Foto: Divulgação)
“Não quero que as pessoas me conheçam por quem eu realmente sou, mas por quem eu pareço ser”. O motto é de Cecil Beaton, que tinha recém-completo seus 19 anos quando o escreveu em 1923. A ambiguidade é fenomenal: força e fragilidade em tão poucas palavras. Quem de nós, afinal – mais ainda no “mundinho moda” – não criou sua própria fantasia, por mais real ela que seja? Noite dessas, uma leitora me viu fumando na calçada mas, sem coragem momentânea, me mandou uma mensagem horas depois: “você parecia um retrato da Belle Époque”. Vê só? Pura fantasia! Não sou um retrato, muito menos daquela época em que a palavra ‘glamour’ tinha sentido. Ainda assim, está longe de ser fingimento – não tenho culpa de adorar casaquinhos de veludo preto, acessorizados com broches de vidro colorido e uma espiral constante de fumaça.
Acontece que a verdadeira fantasia, essa que o espírito humano perdeu a capacidade de alcançar, já ficou bem para trás. Às vezes, aparece por alguns minutos antes de sumir de novo, como foi com a nova apresentação masculina da Celine, orquestrada por Hedi Slimane. Anunciada por um trompete ao ritmo de Les Indes Galantes, de Rameau, a coleção desfilou nos jardins de Holkham Hall, lar centenário dos condes de Leicester. Mais do que moda, foi um retrato social digno das lentes de Cecil Beaton – tanto, aliás, que foi essa sua grande inspiração: ‘The Bright Young Things’, o grupo nervoso de jovens privilegiados, perdidos e infelizes que, por um momento breve na vida, ensinaram uma forma de beleza para a História.
Antes de ontem, arrisco dizer, a última vez em que essa lição de estilo encheu uma sala foi em 1927. Naquele verão em Brook Street, Londres, o capitão-solteirão McEacheran reuniu a nata da juventude (socialites aspirantes a artistas, músicos, autores e dançarinos) para uma festa de completa ilusão. No tema “Impersonation”, cada um se vestiu aos modos de uma celebridade viva que alcançou aquilo que nenhum dos convidados, com personalidades mercuriais, conseguiu. Beaton, um dos presentes, se montou de Lillie Langtry, a atriz que conquistou o coração e a cama do rei Edward VII.
Foi a apoteose daquela geração hedonista que sobreviveu à Primeira Guerra e, como consolo próprio, criou uma atmosfera de excessos e superficialidade. Para alguns poucos, o efeito da fantasia e dos cigarros turcos passou rápido. Evelyn Waugh, autor precoce que também marcou presença, terminou achando tudo “ridículo” e, meses depois, publicou uma novela satírica, ‘Decline and Fall’, desdenhando de toda a futilidade. O sucesso, dois anos mais tarde, fez nascer uma continuação, ‘Vile Bodies’.
Se o sentimento velado de culpa pelos privilégios, entretanto, forçou essa alta sociedade a encenar teatros sociais e cultuar a auto-objetificação (eram eles os ‘things’, afinal), Slimane, na Celine do século XXI, inverte os valores. Aqui, a coleção é apenas “The Bright Young’, sem “coisas” ou afetações exageradas. O sentimento humano e o gosto por esse tipo de beleza decadente é quem comanda o navio. Ainda é verão na Europa e o desfile-passeio pelo jardim oitocentista procura flertar com o frescor e a paz da solidão, elevada à divindade e muito bem-vestida.
É, sim, possível imaginar cada uma das beldades que cruzaram os salões ingleses dos anos 1920 com esses últimos modelitos franceses. Alfaiatarias em risca de giz, robes de chambre, coletes, boaters de ráfia, lenços em seda, meias vermelhas, gravatas-borboleta brancas, suspensórios, flores na lapela, cartolas, casacas, bengalas, botas de montaria… Tudo é onírico e, com a exceção perdoável de bonés que quebram o clima, Slimane resgata o sentimento remoto de uma geração passada: a delícia da ilusão e a superficialidade saborosa do excesso.
Resta saber o que serão desses meninos corajosos que vão embarcar na jornada um século depois. Poucos resistem às tentações da beleza. O honorável Stephan Tennant, herdeiro de fortuna na Inglaterra, desapareceu da vida pública quando a magia acabou na década de 1930. Clarita de Uriburu, “a Vênus”, fugiu para a Argentina. Dolly Wilde, sobrinha de Oscar Wilde, morreu jovem, como o tio. Doris Castlerosse e Brian Howard, dupla infalivelmente glamorosa, tiraram a própria vida depois do fracasso de não alcançarem seus sonhos mais reais. Lord Arlington e Lois Sturt, estrelas sociais por natureza, também não resistiram: definharam pelo álcool e dietas para tentar curar a perda de uma era. Ser um “jovem brilhante”, enfim, tem um custo mais alto do que a aparência sugere.