Em tempos de amores líquidos e afetos voláteis, há quem ainda busque profundidade no contato humano. A fotógrafa Allister Ann é uma dessas pessoas — e seu projeto Guise é a prova de que intimidade pode, sim, ser cultivada entre o clique de uma câmera e o silêncio entre dois corpos. Longe do voyeurismo ou da rigidez dos retratos convencionais, ela convida homens a se despirem — emocional e simbolicamente — para serem vistos, não apenas olhados.
A fotógrafa, natural de Nashville, nos Estados Unidos, havia acabado de se mudar para Los Angeles e de maneira tímida, mas firme foi se entendendo e descobrindo a cidade em 2015. Foi quando baixou o aplicativo de namoro e uma ideia surgiu na sua cabeça: por que não fotografar as pessoas?
“Vivemos uma era em que as conexões são muitas vezes superficiais. O que eu queria era explorar o que acontece quando você se entrega ao outro, mesmo que brevemente. O que é possível construir entre dois estranhos quando há abertura?”, questiona Ann, em entrevista à Bazaar. A premissa parece simples, mas o resultado é de uma força rara. Homens fotografados em diversas ocasiões, mas todos em momentos de suspensão, vulnerabilidade, silêncio. O olhar de Allister — feminino, atento, quase cúmplice — percorre cada gesto com delicadeza e coragem.

Projeto Guise ( Reprodução/Allister Ann)
Foi assim que nasceu Guise, um projeto fotográfico que desafia estereótipos de masculinidade ao retratar homens de forma crua, sensível e sem filtros. O nome, aliás, não é por acaso. Guise — disfarce, aparência — propõe, justamente, desmanchar a fachada com que muitos homens se apresentam ao mundo. “Eu queria ver o que existia por trás das camadas de expectativa, de performatividade. Cada encontro era um pequeno ato de confiança. Às vezes, a intimidade acontecia em minutos. Às vezes, levava horas. Mas sempre havia alguma troca”, diz ela.
Essa proposta visual também desafia padrões hegemônicos do masculino. Os corpos que aparecem em Guise são diversos — em idade, tipo físico, etnia, estilo. Não há o estereótipo do homem idealizado. Há o homem possível. Há o homem real.
As imagens de Allister, feitas majoritariamente com rapazes que ela conheceu via redes sociais ou em encontros casuais, mostram não têm o objetivo de chocar ou seduzir. São sobre presença. Uum corpo recostado na cama, um olhar em suspensão, um gesto hesitante de afeto, são cores e formatos. Pequenos fragmentos de uma intimidade rara nos tempos de swipe right, ghosting e nudes em série.
“Alguns desses retratados eu conheci em aplicativos, outros foram amigos de amigos. Cada ensaio começava com uma conversa — às vezes longa, às vezes quase muda — mas sempre com o compromisso de estarmos ali, um diante do outro, sem pressa”, explica a fotógrafa. “Eu queria ver como era possível construir proximidade em pouco tempo. Isso é uma coisa da nossa época: conexões rápidas, mas que nem sempre são vazias”.

Projeto Guise ( Reprodução/Allister Ann)
O gesto de ver
A fotógrafa conta que se inspirou em parte pela sua própria curiosidade sobre as dinâmicas entre olhar e ser olhado. “Nós, mulheres, crescemos sendo vistas — muitas vezes sem o nosso consentimento, muitas vezes em condições de desequilíbrio de poder. Eu queria entender como seria inverter esse jogo. E mais do que isso: queria saber o que acontece quando o outro aceita ser olhado com respeito e atenção, e não com desejo de posse”.
As sessões de fotos, que ela define como “pequenos experimentos de presença”, costumam acontecer em ambientes privados — quartos de hotel, casas, espaços íntimos. Nada é muito planejado. A espontaneidade é parte do método. “Alguns traziam roupas, outros já chegavam dispostos a tirar tudo. Para mim, o mais importante era que se sentissem à vontade. Que soubessem que estavam ali não para me agradar ou performar, mas para serem”, afirma.
E o resultado, de fato, não poderia ser mais diferente de editoriais de moda masculinos ou retratos posados. Há fragilidade nas fotos. Há desejo, mas um desejo quase sem direção — mais como tensão do que como erotismo. Há cuidado. Há espaço. Guise não quer seduzir o espectador, mas oferecer uma janela para algo que normalmente não é mostrado: a vulnerabilidade masculina como campo de exposição e não de poder.

Projeto Guise ( Reprodução/Allister Ann)
Amores líquidos, laços densos
A teoria do “amor líquido”, cunhada por Zygmunt Bauman, não poderia ser mais pertinente ao contexto de Guise. O sociólogo polonês descreve uma era em que os vínculos afetivos se tornaram frágeis, descartáveis, marcados pelo medo do compromisso e pela busca incessante por novidades. Mas, em vez de lamentar essa fluidez, Allister a observa com curiosidade e tenta extrair dela momentos de solidez.
“Sim, esses encontros eram efêmeros. Alguns duraram uma tarde. Outros, uma noite. Mas havia verdade ali. Havia presença. E às vezes é isso o que mais falta hoje: estar realmente com alguém, ainda que por pouco tempo.”.
As palavras de Bauman ecoam nas entrelinhas do projeto: “Na modernidade líquida, as relações escorrem entre os dedos”. Allister, ao contrário, parece determinada a segurar pelo menos uma gota antes que ela se vá. O instante que ela captura com sua lente — e com sua escuta — é efêmero, sim, mas é também profundo. São laços densos que se formam num tempo em que os vínculos tendem a evaporar.
Um feminino que observa
Ao inverter a lógica tradicional da fotografia — em que o homem é o observador e a mulher, o objeto —, Allister propõe uma nova narrativa. Seu olhar, feminino e direto, não fetichiza nem domina. Busca. Questiona. Acolhe. E, com isso, revela.
“Alguns homens se sentiam desconfortáveis no início. Estavam acostumados a ver mulheres sendo fotografadas assim, mas nunca a ocupar esse lugar. Mas a câmera não era uma arma. Era uma ponte”, explica. “Eu não queria capturá-los. Queria enxergá-los”.
Intimidade como resistência
Em uma sociedade saturada de imagens, Allister Ann oferece um contraponto: imagens que não se esgotam, que não se explicam por inteiro. Que resistem. “Uma amiga uma vez viu as fotos e me disse: ‘isso é sobre amor’. E ela estava certa. Era sobre o amor no que ele tem de mais sutil, a escuta, a entrega, a presença. Mesmo que tudo acabe no dia seguinte”.
O projeto, que nasceu de forma quase espontânea, agora ruma para novos formatos. Allister planeja um livro com os retratos e relatos escritos a partir dos encontros. Mas, para ela, o mais importante ainda é o gesto inicial: parar, olhar, permitir-se ser tocada e tocar.