Foto Gabi Lisboa, look Cris Barros

Por Paula Jacob

Falar sobre uma experiência traumática já não é fácil na pessoa física, imagina transpor para o cinema ou a literatura. Imagens e palavras, às vezes, parecem não dar conta daquilo que passou, independente do que seja: um luto, uma perda simbólica, uma relação abusiva. Mas existem escritoras e cineastas que estão interessadas em investigar as possibilidades que as ferramentas artísticas podem oferecer para, quem sabe, fazer a audiência sentir e refletir sobre determinados temas. É o que acontece com Satisfação, estreia da diretora Alex Burunova, em cartaz na Mostra de São Paulo.

Na trama, conhecemos Lola (Emma Laird), jovem compositora que respira música. Um talento em ascensão, ela conhece o também músico Philip (Fionn Whitehead) e logo desenvolvem uma amizade profunda de risadas, festas, histórias compartilhadas e hobbies parecidos. Ele ajuda ela, ela ajuda ele. Até determinado ponto, quando Philip começa a gostar dela além de uma amiga e, então, decide investir na aposta do coração. O filme, construído a partir de flashbacks, vai mostrando para a audiência que o que parecia um conto de fadas, na verdade, se transforma em uma relação imatura, com jogos de poder e manipulações emocionais. 

À medida que o tempo passa, entendemos a falta de inspiração de Lola, a sua apatia pela vida e a vontade incontrolável de largar Philip. Com um olhar sensível, Alex Burunova constrói uma história sensorial, impossível de escapar. Bazaar conversou com a diretora e roteirista, que esteve no Brasil para o lançamento de Satisfação, após o sucesso que teve em outros festivais e a estreia oficial no SXSW, em março deste ano. A BAZAAR conversou com a diretora, veja a entrevista completa: 

HARPER’S BAZAAR BRASIL: Você trabalhou nesse projeto por muito tempo. Como é finalmente colocá-lo no mundo e ver a reação do público?
Alex Burunova Sim, foram 10 anos de trabalho e, sabe, quando você está dentro de um projeto assim, sua cabeça está totalmente imersa nele. Então você não pensa muito sobre o que vai acontecer quando ele estiver pronto. Enquanto está fazendo, você só vai passo a passo, garantindo que tudo se encaixe, que a visão artística seja preservada, que tudo seja honesto e venha do coração. Você se certifica de estar reagindo ao material. Então, quando chegou o momento da estreia, eu simplesmente não estava preparada. Eu pensei: “Espera, agora eu tenho que mostrar para todo mundo? Como assim?” (risos) E, até agora, a resposta tem sido positiva — na verdade, extremamente positiva. Claro, também houve algumas reações negativas, mas foram ao conteúdo, não à forma. E eu gosto disso. Eu queria provocar conversas com esse filme. Era importante para mim que ele não deixasse ninguém indiferente. Espero que as pessoas saiam da sessão discutindo e refletindo sobre os temas que o filme levanta.

HBB:Tenho visto muitos filmes dirigidos por mulheres — no Festival do Rio e também aqui na Mostra de São Paulo — sobre trauma, desigualdade de gênero, maternidade etc. O que você acha dessa nova geração de diretoras abordando esses temas de maneira tão sensível?
AB: Ao longo dos últimos séculos, as mulheres foram treinadas para guardar tudo para si, para silenciar, para absorver comportamentos negativos em silêncio — mas chega, acabou. Agora temos uma geração de cineastas que tomam posição, que tiram o estigma de falar sobre o trauma, sobre o que aconteceu. Há tantos filmes maravilhosos surgindo, um atrás do outro, nos quais mulheres estão abordando esse trauma coletivo de terem sido silenciadas. Acho que essa é a raiz de todo o mal na nossa sociedade hoje. E, claro, a forma como as mulheres contam histórias é diferente. É mais sutil, mais sensível. Busca abarcar a plenitude e a riqueza da experiência feminina. Não é só sobre a vítima, ou a mãe, ou a amante, ou a artista — é sobre uma mulher que é tudo isso ao mesmo tempo, vivendo o trauma dentro da complexidade de sua experiência. Nunca tínhamos visto isso antes, nessa recorrência e alcance.

HBB: Exatamente. E Emma Laird é uma atriz incrível. Você pode me contar um pouco sobre como foi a colaboração com ela, entre as filmagens e os ensaios?
AB: Emma é uma joia. Uma artista de verdade. Vi o trabalho dela as diárias de O Brutalista, porque meu produtor também produziu esse filme, e fiquei impressionada com o quanto ela é autêntica e como suas escolhas mudam de uma tomada para outra. Acho que em breve todos conhecerão o nome dela – ela já está filmando cinco grandes projetos este ano. A forma como ela trabalha é tão refrescante, tão real. Eu venho do teatro e acredito em uma preparação imersiva. Trabalhamos juntas por seis meses. Ela fez aulas de música, aprendeu piano, conheceu músicos do leste de Londres — de onde vêm as personagens —, trabalhou com preparadores de elenco… Tudo de forma específica e profunda. Construímos as memórias da personagem, da infância até a vida adulta. Ela foi corajosa, honesta, sempre disposta a tentar qualquer coisa. Ela é uma joia — é um privilégio trabalhar com alguém assim.

HBB: O som, a música e também o silêncio são muito importantes no filme. Isso sempre fez parte do seu processo criativo?
AB: Sim, o som, a música e os silêncios já estavam escritos no roteiro. Há um momento em que duas personagens estão sentadas à beira do mar, uma se abre com a outra, e nós não ouvimos o que é dito — apenas o som das ondas. Isso já estava no texto. Sou muito apaixonada por som e música. Escrevo os roteiros já pensando nisso — é uma obra sonora, feita para envolver o espectador. Eu criei a linguagem do filme antes mesmo das câmeras começarem a rodar, com o mesmo cuidado que dediquei à linguagem visual.

HBB: Minha próxima pergunta é justamente sobre essa experiência imersiva. O filme parece quase físico — o som, a imagem, a atuação, a direção —, tudo se conecta de forma poderosa. Como você conseguiu juntar todas essas peças?
AB: Era muito importante para mim que o filme fosse imersivo — que o espectador quase pudesse senti-lo. Quando filmamos a comida, usei ingredientes que evocam cheiro e sabor — limão, cebola, especiarias — para que você quase pudesse senti-los. Meu designer de som, Javier Umpierrez, da Cidade do México, trabalhou comigo por meses. Usamos frequências específicas para garantir que o público sentisse o som no corpo. Por isso é tão importante assistir ao filme no cinema, com surround. O mesmo vale para as cores: minha diretora de arte, Olga Yurasova, e eu criamos uma paleta emocional. Cada cor correspondia a um sentimento, deixávamos as cenas em determinados tons (ou suprimimos eles) para garantir essa imersão. É algo mais sentido do que explicado, mas tudo foi intencional.

HBB: Que incrível saber disso. E sobre a cena central do drama, como você escolheu filmá-la?
AB: Estava no roteiro desde o início. Filmei toda a cena no rosto da Lola. Muita coisa acontece, mas o foco é a experiência dela — sua reação, a lenta percepção do que sente, e a decisão de não dizer ou fazer nada. É quase uma resposta automática. A atuação de Emma Laird é tão crua — você vê ela processando e se desligando. Para mim, o trauma não é sobre o que aconteceu, mas sobre como isso muda a pessoa. Algumas crescem, outras se fecham completamente. Eu queria capturar o momento em que ela perde a voz e se torna outra pessoa.

HBB: E como foi trabalhar o Philip, esse personagem tão complexo, que é gentil, carismático, mas cheio de camadas.
AB: Philip não é nem bom nem mau. É um personagem sutil, tranquilo, envolvente. O filme é sobre uma relação tóxica, sobre um amor doentio. Essas relações não acontecem com homens que desprezamos, mas com homens em quem confiamos, admiramos e até amamos. Eu queria que Philip transmitisse confiança e aconchego. Fionn Whitehead é um ator britânico com formação clássica, pudemos conversar sobre privilégio, autopercepção e nuances. Ele trabalhou muito para tornar Philip crível.

HBB: Algum outro projeto em mente?
AB: Meu próximo filme já está escrito. Se passa na Índia e se chama Sunrise of the Himalayas. É uma comédia dramática budista — um tom um pouco mais leve — sobre a jornada de autodescoberta de uma mulher por meio da família e de memórias de infância.