Ao longo de mais de cinco décadas de carreira, Bob Wolfenson construiu uma obra que é, ao mesmo tempo, espelho e enigma. Reconhecido por seus retratos emblemáticos e por uma abordagem sofisticada da moda e do nu, o fotógrafo sempre buscou mais do que a imagem: ele persegue o instante — aquele que escapa, que não se repete, que diz tudo sem dizer nada.
Em sua nova exposição, “Exteriores”, em cartaz na Unibes Cultural a partir de 26 de agosto, Bob se afasta dos cenários controlados do estúdio para mergulhar no imprevisível das ruas. Câmera em punho, ele caminha como quem escreve com a luz, capturando gestos passageiros, encontros fortuitos, desertos urbanos — tudo aquilo que o cotidiano entrega a quem sabe ver. “Estas imagens não são sobre os lugares onde foram feitas, mas sobre um fotógrafo que, ao realizá-las, capturou estes exteriores de si”, afirma.
A mostra, que reúne 53 fotografias feitas em diferentes cidades do mundo, revela um Bob observador, quase invisível, movido por uma curiosidade silenciosa e uma escuta visual rara. Com curadoria assinada por ele e por Ana Tonezzer, e expografia de André Vainer, “Exteriores” transforma o espaço em narrativa: uma crônica visual da vida em trânsito.
Na conversa a seguir, Bob reflete sobre o tempo, o acaso, a solidão urbana e essa nova etapa de sua trajetória — em que olhar para fora se torna também um gesto de olhar para dentro.
HARPER’S BAZAAR BRASIL – “Exteriores” é o nome da exposição, mas também pode ser lido como uma provocação sobre o que está além da superfície. O que esse título revela — ou esconde — sobre a mostra?
BOB WOLFENSON – De fato, Exteriores não é um nome óbvio. Embora todas as fotografias tenham sido feitas, digamos, “fora de mim”, o título carrega esse sentido de algo externo, algo que está para além do eu. Mas também há uma provocação aí. Eu não queria que soasse como uma mostra de fotos de viagem, ou como se fosse sobre “o exterior” no sentido geográfico. O termo carrega um ruído intencional: ao mesmo tempo em que remete ao espaço público, às imagens captadas em ambientes abertos, há também registros feitos em lugares internos, às vezes até claustrofóbicos. Exteriores, portanto, opera nesse duplo movimento — entre o fora e o dentro, o visível e o subjetivo.
HBB – Como foi o processo de curadoria para selecionar as imagens desta exposição? Houve uma linha estética ou afetiva que guiou suas escolhas?
BW – Ele começou de uma maneira meio anárquica. A ideia de Exteriores já existia, porque eu vinha há tempos observando fotografias que fazia de forma descompromissada, sem destino certo. Eram registros soltos (quase como anotações visuais), olhares fortuitos sobre coisas aparentemente desimportantes.
Em 2020, meu acervo foi atingido por uma enchente e cerca de 80% dele foi afetado. Só em 2022 iniciei um processo mais sistemático de restauração. Nesse reencontro com as imagens, comecei a descobrir trabalhos dos quais nem me lembrava. Algumas fotos me causavam surpresa e eu me perguntava: “isso é meu mesmo?”. Foi nesse garimpo que encontrei algumas pepitas.
Dessas redescobertas, selecionamos pouco mais de cinquenta imagens para a exposição. Essas mesmas imagens (e outras, totalizando cerca de setenta) estarão reunidas no livro que acompanha a mostra, publicado pela COSAC Edições.
O papel da Ana Tonezzer, que acabou se tornando co-curadora da mostra, foi fundamental nesse processo. Ela construiu novos enredos para essas imagens, outros nexos que não estavam contidos na feitura delas. Você começa por uma e, de repente, encontra outra. São relações que talvez só quem mergulha profundamente no material perceba, mas que formam a espinha dorsal da mostra. Convidei a Ana para coassinar a curadoria justamente porque ela trouxe esse novo olhar — que deu um sentido único ao conjunto. Foi assim que imagens antes soltas começaram a compor outro percurso.
HBB – Você sempre transitou entre os universos da moda, do retrato, da cidade e do nu. Como essas linguagens se encontram ou se sobrepõem em Exteriores?
BW – Se há algo no meu trabalho que considero original, talvez seja justamente o fato de transitar por muitas disciplinas e vertentes da fotografia. Eu me movo entre diferentes gêneros: das fotografias de galerias e museus à moda, do retrato ao nu, da publicidade aos projetos autorais que crio por impulso próprio. E eu não estaria sendo o fotógrafo que estou sendo no momento em que fotografo se não fossem todos esses outros fotógrafos que me habitam; só posso estar sendo aquele porque esses outros estão, de alguma forma, sempre ali — pairando sobre mim.
Exteriores não foge a essa lógica. Na verdade, ele é parte integrante de todos esses mundos. Ao longo da minha trajetória na moda, por exemplo, viajei — e ainda viajo — por muitos lugares em busca de locações; mas também em viagens pessoais, estadias mais longas, deslocamentos variados. E em todos esses momentos, estou com a câmera. Produzo imagens que, naquele instante, talvez não tenham um sentido específico. Às vezes até têm, mas não foi esse sentido que as trouxe para este conjunto, para este trabalho. As fotografias reunidas em Exteriores nascem desse trânsito (físico, simbólico e estético) entre o que vejo, onde estou e tudo aquilo que me faz ser fotógrafo.
HBB – Seu olhar sobre o corpo e o espaço urbano é, ao mesmo tempo, íntimo e crítico. Que Brasil está presente nas imagens da exposição?
BW – Acho que o Brasil não está explicitamente presente nas imagens; ao menos não em todas. Em algumas, sim. Mas que Brasil seria esse? São muitos Brasis. O que está ali é um Brasil visto pelo meu olhar, o de um brasileiro. Apesar do nome estrangeiro — Bob Wolfenson — eu sou profundamente brasileiro, com muito orgulho. E isso é minha fundação e, claro, está no meu trabalho.
Nas fotos feitas no Brasil (que talvez sejam metade da mostra, embora eu não tenha contado), aparecem muitos matizes dessa identidade. Desde o Bom Retiro, bairro onde nasci, no seio de uma comunidade judaica, até trilhas, campos, praias, litorais e cidades como Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Maceió e Belém. Há, de fato, vários Brasis nesse Brasil.
Talvez o que una essas imagens seja o olhar; a maneira como eu me relaciono com o mundo quando coloco uma câmera no olho. Porque nesse gesto já há uma escolha, uma intuição, uma opinião. O fotógrafo seleciona, isola, organiza o mundo com o enquadramento e, nisso, há sempre um sentido.
E mesmo nas fotos feitas fora do Brasil (no exterior, não em Exteriores), ainda é um brasileiro quem está ali fotografando. Um brasileiro cuja vida inteira foi vivida aqui, formada aqui, influenciada, atravessada pelas questões do país. O meu olhar, mesmo longe, continua sendo brasileiro.
HBB – Em que medida ela dialoga com o presente? Há alguma intenção que atravessa a mostra?
BW – Ela dialoga com o presente porque, de certa forma, é um encontro com ele. As imagens estavam ali, soltas, guardadas quase sem importância, dispersas ao longo do tempo. Mas, nesse gesto de recaptura, elas ganharam uma nova história, um novo ritmo, um novo modo de aparecer.
Algumas dessas fotografias foram feitas agora, nos últimos anos; outras vêm de tempos distintos, mas todas foram escolhidas a partir de hoje, do momento presente. O ato de reunir essas imagens, de olhar para elas com atenção agora, é em si um gesto atual. Como estou montando esta mostra neste momento, ela é uma expressão direta do que estou vivendo, do que quero mostrar agora.
Ela é presente não só no conteúdo, mas também no processo. Sim, sim — principalmente no processo.
HBB – Vivemos um tempo de excesso de imagens — rápidas, descartáveis, digitais. Qual é o lugar da fotografia autoral hoje?
BW – Acredito que, seja qual for o aparelho à sua frente — um celular, uma câmera, ou o que mais inventarem para produzir imagens — sempre será preciso haver um autor por trás da construção da imagem.
A fotografia já viveu inúmeras transformações. E, em todas elas, os fotógrafos seguiram em frente. Acho que vão continuar sobrevivendo, porque ainda será necessário ter conhecimento, técnica, estilo, sensibilidade, um jeito de ver, uma preocupação com o mundo. Tudo isso fundido a personalidades únicas faz com que sempre haja algo que salte aos olhos.
A fotografia, por ser altamente reprodutível e por muitas vezes se aproximar demais da realidade, pode perder, em certos momentos, seu caráter poético, artístico. Mas até isso hoje se tornou matéria-prima. O olhar de um autor continua sendo essencial: entre o real e o imaginário, é ali que nasce alguma imagem contundente e que permanece.
HBB – O que você espera que as pessoas sintam, reflitam ou levem consigo ao visitar Exteriores?
BW – São dois momentos distintos: a exposição e o livro.
O que eu espero é que as pessoas façam suas próprias histórias, encontrem suas relações, viajem por esses exteriores de si. Estes são os meus Exteriores, mas gostaria que cada pessoa pudesse transitar pelos seus. Que tenham uma fruição real dessa experiência, tanto ao ver as imagens no livro quanto ao encontrá-las nas paredes da exposição.
Eu ainda sou, talvez por formação ou por paixão antiga, um amante da fotografia impressa. Sempre pensei que a fotografia se realiza e se concretiza primeiramente quando é física. E é nessa sua fisicalidade que ela atinge seu auge — na impressão. Estando na parede, no jornal, na revista ou, sobretudo, no livro. O livro, nesse sentido, é um ápice. E quando livro e exposição se encontram, aí sim, é a cereja do bolo.