
Chris Evans, Dakota Johnson e Pedro Pascal protagonizam “Amores Materialistas” de Céline Song – Foto: Divulgação
Por Paula Jacob
Muitas coisas tortuosas aconteceram no caminho de “Amores Materialistas”. O segundo longa-metragem de Céline Song continua na investigação da diretora sobre o lugar do afeto na sociedade contemporânea. Depois do ideal de primeiro amor colocado em xeque no belíssimo “Vidas Passadas”, ela retorna com algo até mais sombrio: a capitalização das relações. Na campanha de divulgação, uma aura de romantismo pairava no ar – a difícil decisão entre dois homens (interpretados pelos america’s sweethearts Pedro Pascal e Chris Evans) para matchmaker Lucy (Dakota Johnson) tomar.
O problema começou a acontecer no TikTok, quando as pessoas “desavisadas” iam para a sessão esperando algo na linha de “De Repente 30” e saíam devastadas com a mensagem mais para “Black Mirror”. A chuva de comentários negativos não demorou para tomar conta da rede social, reacendendo o comportamento de manada tão comum hoje em dia — e o público parecia ir ao cinema apenas para chancelar no seu perfil do Letterbox que a Céline Song perdeu a cabeça.

Dakota Johnson e Pedro Pascal em cena de “Amores Materialistas” de Céline Song – Foto: Divulgação
A cineasta, na verdade, está mais interessada nas entrelinhas que as clássicas comédias românticas foram incapazes de preencher, deixando um vácuo social na esperança da vida perfeita pós-créditos — contudo, os millennials que cresceram nos anos 1990 já sabem que não é desse jeito que a banda toca. Tudo construído a partir de elementos das próprias comédias românticas (músicas apaixonadas, cenários perfeitos, lookinhos elegantes, uma Nova York idealizada e por aí vai).
Nessa dicotomia entre imagem e texto, Céline costura a sua crítica a respeito da falta de cuidado que temos uns com os outros. Na vida de Lucy, homens e mulheres são um sistema, uma sequência de caixinhas a serem preenchidas de acordo com “exigências” pautadas num ideal de si e do outro. Caso todas (ou boa parte delas) forem preenchidas, a garantia de felizes para sempre vem. Doce ilusão.
Na lista de clientes, estereótipos contemporâneos de homens ganham forma: o executivo quase 50+ querendo namorar apenas meninas de 20 e poucos anos; o pseudo-atleta que só se interessa por mulheres magras; ou o até sem tanta personalidade que acaba sendo o pior de todos os esquerdomachos. As mulheres, claro, não fogem da observação ácida de nossos tempos cada vez mais líquidos: a conservadora que não aceita ninguém que more fora da Manhattan; a jovem branca que não tem preferência por raça, “mas a primeira opção precisa ser branco”; e a que leva um verdadeiro dossiê do homem ideal “porque ela merece” — “I’m a catch!”, diz a personagem.
Nesse misto de preciso-pagar-as-contas com sou-boa-no-que-faço, a vida pessoal de Lucy acaba se misturando com a profissional quando ela começa a namorar um potencial cliente da agência que trabalha, Harry (Pedro Pascal). Tido como um homem “unicórnio” por ser perfeito demais (riquíssimo, bem vestido, com bom gosto, ótimo currículo universitário, família unida etc etc), ele cai nas graças da protagonista que não se enxerga o suficiente para estar com ele. Afinal, ela é o oposto dessa lista. E como tudo é matemática na equação do amor, óbvio que não daria certo — será?
As coisas ficam ainda mais confusas quando ela, sem querer, reencontra o ex, John (Chris Evans), aspirante a ator de teatro e garçom nas horas vagas, beirando os quarenta, mas morando ainda em uma república com outros homens nessa mesma vida de pouco compromisso com a realidade adulta. O amor dos dois é inegociável, porém o término, descobrimos, aconteceu por dinheiro. Ela fica entre o rico (quase) ideal ou o pobre disposto a amá-la de verdade. Um filme que tem no título a palavra “materialista” não poderia, portanto, abordar outra coisa que não os efeitos do capitalismo nas nossas relações interpessoais.
Em “Tudo Sobre o Amor” (Ed. Elefante), bell hooks escreve que “o materialismo cria um mundo de narcisismo, no qual o foco da vida é apenas comprar e consumir”. Para a pensadora, essa lógica do “eu” em primeiro lugar dá espaço para ganância e exploração. “Em um mundo sem amor, o desejo de conexão pode ser substituído pelo desejo de possuir.” No filme de Céline Song, esse jogo entre o amor e o ideal de relacionamento está o tempo todo latente. Queremos mesmo nos relacionar e enfrentar tudo o que isso significa ou só queremos mais uma coisa que nos dê capital social? Dar check em todas as caixinhas garante alguma coisa ou é apenas outra forma de nos iludirmos? Seguindo no raciocínio de bell hooks, é exatamente aí que mora a armadilha: se todos os corpos são substituíveis, os laços de amizade, comunidades e casamento não podem durar.
Por mais que não veja “Amores Materialistas” como um grande filme tal qual o primeiro da cineasta, ainda há algo além da superfície de flores cheirosas e cidade ensolarada que permeia a história. O amor é mais complexo, profundo e cheio de texturas. E Lucy terminar com a escolha não tão óbvia assim, num lugar de possível status financeiro pela proposta de promoção, a colocaria no lugar de poder dentro de uma relação heterosexual, que sempre foi posta na indústria cultural como o contrário (alô, homem provedor). Talvez essa outra inversão de Céline Song escancare um certo conservadorismo que também é fruto do nosso tempo — um incômodo, de fato, difícil de engolir.