“O Rasgo”, Simone Cosac Naify, 2023. Acrílico, 50 x 40 cm.

Simone Cosac Naify já era o talk of the town semanas antes de pousar no Brasil. Alta, loira, sorridente e quase sempre de preto (joias discretas, mas presentes), carrega, afinal, um sobrenome inconfundível. O primeiro – herança da família árabe – divide com o divino-excêntrico editor Charles Cosac, seu irmão. O segundo, igualmente emblemático, vem do marido, o fotógrafo e empresário estadunidense Michael Naify. Para os esquecidos ou ignorantes (ops!), os cunhados foram os pilares da saudosa editora de arte e literatura Cosac Naify, um luxo como poucos no Brasil – e de luxo, Simone entende bem.

Na inauguração de sua primeira exposição em território nacional, “Conteúdo Sensível”, tirou os sapatos de fivelas brilhantes para andar descalça pela New Gallery com sua poodle preta (a Tutu) no colo. Entre aquarelas, acrílicos e esculturas, ela mesma uma obra de arte; meio moderna, meio surrealista, meio um movimento ainda a ser inventado – e a julgar pelas histórias familiares (sua mãe podia se fixar no espelho por horas, analisando o próprio reflexo), dá para entender a teatralidade espontânea. “Mas não sou nada como a minha mãe”, se defende.

“Sanguis”, Simone Cosac Naify, 2024. Aquarela, 41 x 61 cm.

O assunto delicado da maternidade faz sentido na conversa porque, já com três filhos adultos, Simone se apoia no tema em boa parte de sua obra. “A maternidade faz surgir um amor visceral. Quando um filho nasce, é como se metade de nós renascesse e a outra fosse enterrada. Às vezes, sonho que ainda nem me casei, mas meus filhos já estão lá comigo.” Por essa perspectiva íntima de camadas e dimensões várias (algumas semi-inexplicadas), a artista mergulhou no mote com um equilíbrio paradoxal de sensibilidade e frieza.

Entre os 30 trabalhos expostos, há fetos vermelhos bem acomodados em úteros azulados e outros já desconfortavelmente nascidos. De maneira um pouco mais de visceral, alguns sequer passaram da infância: estão envoltos em lençóis, segurados por mães desoladas. Poucas horas depois do início do vernissage, duas dessas obras já estavam vendidas para uma anônima comovida que conhece a dor de perder um filho – para Simone, “uma distorção cruel da ordem natural da vida”.

“Meu Pranto”, Simone Cosac Naify, 2023. Acrílico, 80 x 60 cm.

A esse corpo artístico, o curador Shannon Botelho deu o nome ‘Mater Dolorosa’. É um resumo de comentários profundos (disfarçados sob pinceladas delicadas) sobre memórias “grotescas” da autora que, por dez anos, se dedicou ao trabalho com crianças vítimas da guerra no Iraque, em um hospital em Florença. “Estavam completamente mutiladas”, ressente, ainda dolorida pelas notícias dos conflitos no Oriente Médio, onde “a religião é usada como arma”. Por esse motivo, em ‘Mater Crucis’, a segunda parte da mostra, faz um uso perfurante de símbolos religiosos como denúncia. Perfis de figuras andróginas, machucadas e sufocadas por crucifixos e arames farpados, servem para revelar as realidades fatais e hipócritas mal escondidas em muitos movimentos espiritualizados.

Tesouras perigosamente afiadas também são representação recorrente nas obras: “sou obcecada por elas”. Recentemente, comprou vinte “sem querer”; e a simbologia é pessoal. Dos tempos em que trabalhou com pacientes terminais, em tratamentos paliativos, Simone reflete: “sabemos que vamos morrer, mas não o que é a morte. Pensar no fim como algo absoluto é cruel e, por isso, a tesoura surge com mais opções de corte do que facas ou canivetes”.

“De passagem pelo Brasil, Simone Cosac Naify inaugura sua primeira exposição individual com maternidade, religião e guerra entre os temas centrais”

Entre pensamentos como esse, faz da própria arte uma forma de terapia poética, introspectiva, mas se permite lembrar de momentos engraçados. Da produção de uma escultura coberta por camadas de pó azul, brinca que quase se sufocou dentro do estúdio e, quiçá, seus pulmões (e os de Tutu) ainda devem estar coloridos – e a considerar que, durante anos, Simone também esteve à frente de uma marca homônima de perfumes, seu sistema respiratório é tão único quanto sua personalidade.

A exposição “Conteúdo Sensível”, de Simone Cosac Naify, com curadoria de Shannon Botelho, fica aberta ao público até 27 de novembro de 2024, na New Gallery, de Vera Havir: rua Padre Garcia Velho, 173 – Pinheiros, São Paulo; de terça-feira a sábado, das 11h às 18h.