
Cate Blanchett – Foto: Reprodução/Apple TV
Se tem algo que Afonso Cúaron quer com “Disclaimer” é mostrar que nem sempre tudo é como se parece. Em tempos de fake news, uma história pode ser contada de qualquer jeito e virar uma verdade universal, basta ninguém questionar o ocorrido. Produzida pela Apple TV, o suspense psicológico, baseado no romance homônimo de 2015 de Renée Knight e estrelado por Cate Blanchett, retrata um episódio na vida de uma documentarista que é forçada a confrontar seu passado.
Se plot twist é a chave de ouro de alguns cineastas, para o diretor mexicano a verdade sempre esteve ali, antes mesmo do primeiro episódio começar – com o aviso da Apple sobre conteúdo sensível envolvendo assédio sexual. Além disso, o diretor entrega uma série com cara de seus filmes (prato cheio para quem não é fã de streaming). A fotografia é maravilhosa e a trilha sonora, feita por Finneas O’Connell, irmão mais velho, produtor e principal parceiro musical de Billie Eilish, dá um show. Tudo casa perfeitamente para trazer uma história com julgamento dos fatos atuais como feminismo, maternidade, vingança e até globalização. Abaixo, entregamos alguns spoilers, caso você ainda não tenha visto a obra, recomendamos parar o texto por aqui.
Antes de mais nada, vi algumas críticas superficiais sobre um homem estar retratando uma história de uma mulher. Assim como ocorreu com “Pobres Criaturas”, que tem a protagonista Emma Stone como diretora executiva, mais uma vez, temos o mesmo exemplo. Cate é diretora executiva de “Disclaimer”, o que faz com que participe ainda mais da obra, além de ser protagonista. Dizer isso, é tratar com desrespeito o trabalho dessas mulheres.
No entanto, voltando a Cate, nos últimos episódios, ela se transforma no furacão que é. Antes de começar a assistir “Disclaimer”, assisti “Tár”, filme de 2023 no qual também interpreta a personagem principal. Após finalizar a produção de Cúaron tive certeza: o Oscar de 2023, na qual concorria com o filme de Todd Field, foi injusto. Nada contra Michelle Yeoh, mas Cate é sublime. Talvez tenha algo contra o filme, o tal do “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”, que falaram que ia mudar o rumo do cinema e sigo sem ouvir seu nome desde a semana da premiação.
Voltando a série, ao lado de Cuarón, a atriz retrata exatamente o que ocorre quando uma mulher é estuprada: o medo, a vergonha, o blackout como forma de proteção, entre outros sentimentos, muitas vezes incapazes de serem verbalizados. Antes mesmo de revelar sua versão, Catharine (personagem de Cate) pede para ser ouvida, mas não é. Vira uma espécie de “jogar pedra na Geni”. Ela perde o emprego, a família, o filho, a casa e tudo que pode ser possível. Ela perde calada, sem conseguir se defender.
Afinal de contas, segundo a história do livro, ela é uma mulher perigosa, que atiça Jonathan (na série interpretado por Louis Partridge) – fazendo com que ele perca a vida -, além de ser uma péssima mãe e uma esposa imoral. Inclusive, a cena de envolvimento entre Jonathan e Catharine, contada pelo livro, é uma das cenas de sexo mais impactantes que vi nos últimos tempos, começando pelo bar no hotel. Vale lembrar que a versão contada no livro é a versão que a mãe de Jonathan acreditou fielmente. Uma mulher acreditando que a outra é uma predadora, uma sedutora em série que seu um pobre menino caiu na armadilha.

Cena de “Disclaimer” – Foto: Reprodução/Apple TV
Assim que Catherine conta sua versão e a cena real é revelada, vimos que o “menino” na verdade é um estuprador. A linguagem corporal de Louis Partridge segurando um canivete com a mão tremendo sinaliza que provavelmente pode ser a primeira vez que ele esteja cometendo abuso sexual desta maneira. Ouvi alguns comentários como: será mesmo que ele iria correr esse risco de entrar em um quarto em país diferente do dele, com um canivete para abusar dela?. Bom, acho que os dados só no Brasil sobre assédio sexual dizem muito. Uma pessoa é estuprada a cada seis minutos no País, e 62% das vítimas têm até 13 anos.
Além disso, a série respinga sobre a relação conturbada com a namorada, que já tinha chamando ele de “punheteiro” (ou algo neste nível) desde o primeiro episódio. Inclusive, ela acaba indo embora da viagem para a Itália antes, deixando Jonathan sozinho. O fato é que Cúaron ilustra o fato de que todos os homens são estupradores em série, até mesmo o homem que veio de “família boa”, bem de vida, que viaja e possui uma câmera fotográfica de ponta. Ao contar como foi violentada, Cate Blanchett entrega uma sequência de atuação digna de Emmy, com tristeza, repulsa, nojo e revolta.
Outro ponto que chamou a atenção foi que Catherene só foi ouvida pelo marido quando um outro homem “validou” a sua história. Em seguida, o pai de Jonathan, quando joga as fotos e livros na fogueira culpa a mãe falecida por ter passado a mão na cabeça do filho. Ele cita que sabia que tinha algo errado, mas não se responsabiliza pelo que houve. Muitas camadas de culpa entre mulheres e mães.
Como se não bastasse, há um flerte com as mazelas do século. Quando o pai de Jonathan pega um taxi para ir ao hospital para tentar matar Nicholas, o motorista demonstra ser um estrangeiro vivendo em Londres. Já quando Catherine pede o carro, ela pega um motorista que diz que não pode correr com o automóvel, porque é seu ganha pão e sustento da família. A pejotização escancarada do mundo moderno, que Cúaron, inclusive, retrata em “Babel”, seu outro filme com Cate, lançado em 2006. Por fim, aguardando ansiosamente o Emmy de Cate como vingança ao Oscar 2023.