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Por Paula Jacob
Água, corpo, sangue escorrendo pelo ralo de um banheiro. Cenas entrecortadas costuram a vertigem do começo de A Cronologia da Água, estreia da atriz Kristen Stewart na direção, uma adaptação do romance de mesmo nome, escrito pela americana Lidia Yuknavitch. Ali, depois de alguns takes, entendemos o corpo da protagonista Lidia em colapso, sendo acolhido por uma mulher um pouco mais velha que, logo depois, vamos entender ser a sua irmã. A cena da banheira corta para uma versão anterior, da infância, quando quem acolhe quem se inverte. As irmãs, com cabelos loiros quase ruivos se confundido com o banheiro em tons de rosa, brincam com desenhos no sabão.
Esse espaço de confiança é a única coisa que segura uma a outra em meio a catástrofe anunciada do núcleo familiar. Uma mãe dispersa e ausente, um pai controlador e violento. Esses cortes que formam a montagem caminham ao longo das pouco mais de duas horas, criando camadas de intenção com a metáfora da memória e da água, onipresente na história visual. Ao adiantar as cenas e voltar para o breve passado delas, Kristen vai colocando a gente, aos poucos, em contato com o horror do abuso intrafamiliar.

Estreia da atriz na direção, filme-destaque da programação do Festival do Rio é uma adaptação do livro de mesmo nome, escrito por Lidia Yuknavitch
A irmã, em determinado momento, foge num amanhecer marcado pela neblina. E quem sobra em casa é ela, a pequena Lidia. Logo, essa figura paterna, que deveria proteger e acolher a menina, coloca ela no centro de uma situação sem volta. No abismo, no encapsulamento do trauma. Estupra essa criança até a sua adolescência, controla, bate, violenta. Mas nada disso é mostrado: o que, convenhamos, é pior do que mostrar. Ao longo da história do cinema, incontáveis cenas de estupro tomaram conta das telas – inclusive, orquestrados nos bastidores (não vamos esquecer do que aconteceu em O Último Tango em Paris). As cineastas, porém, seguem mostrando como causar sensações indescritíveis para a audiência usando o poder sensorial do cinema.
Kristen, nesse looping temporal, acrescenta áudios, barulhos, frases que induzem a nossa interpretação do que ocorre. A primeira vez, mais sutil, a segunda, menos e por aí vai, até chegar ao ponto do corpo se contorcer na cadeira do cinema. Sem uma imagem. No lugar, memórias de outros contextos, cenas de natureza, o borbulhar do ódio crescendo no corpo de Lidia – vivida com profunda sensibilidade por Imogen Poots. Não consigo afastar da mente os escritos de Neige Sinno no seu imenso Triste Tigre, ou a história também correlata de Manas, dirigido por Marianna Brennand – todos lançados este ano, diga-se.

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A personagem cresce, vai para a faculdade com bolsa por conta da sua célebre relação com a piscina. Nadadora, ela suspende o tempo e a vida quando está na água. Contudo, diante de uma imensa liberdade experimentada pela primeira vez fora dela, se afoga em vícios, comportamentos autodestrutivos e relacionamentos próximos de um precipício. Na corda bamba, ela cede para o lado do não enfrentamento da questão – o que é bastante compreensível, dada a gravidade do que lhe cerca. Empilha homens abusivos em diferentes medidas, se coloca em situações de alto risco, faz o corpo sangrar até conhecer o bom moço, com quem se casa em um instante. Com ele, faz uma filha que, para o embrutecimento do tecido torácico, nasce sem vida.
Dali em diante, vai tentando de maneiras tortuosas se desvencilhar dessa pulsão de morte a partir da escrita, que sempre esteve presente nos seus diários. A força do papel na página começa a esvair e ela, finalmente, abre espaço para ideias, contos, reconhecimento. Sublima sua dor pela escrita não como uma forma de salvação – e Kristen também foge desse estereótipo – mas como a única possibilidade de talvez mensurar o abismo incrustado em si. Como Neige Sinno escreve: “[A escrita] é uma forma de consolo, mas não suficiente para que qualquer pessoa acabe sendo salva”.
Publica suas histórias, vira professora de inglês e encontra em um homem finalmente disposto a ouvi-la o conforto de um relacionamento tranquilo. Nós, audiência, ainda presos na quebra de lógica temporal, passamos, então, a talvez assimilar o peso de tudo o que passou diante dos nossos olhos, ouvidos, corpo. Só para poder enxergar embaixo d’água as marcas que nunca serão apagadas.
Enquanto adaptação literária, infelizmente me falta a comparação, porque não há edição em português (ainda?) e não tive acesso à versão em inglês. Contudo, enquanto filme, A Cronologia da Água cumpre sua tentativa ou vontade de fazer um retrato da dor de uma mulher que cresceu sofrendo abusos do próprio pai. Um que respeita essa personagem, essa história, longe de achismos ou objetificações daquilo que marca a pele, a carne e o cerne desse corpo em constante possibilidade de colapso diante do mundo.
“A Cronologia da Água” está em cartaz pelo Festival do Rio e chega aos cinemas brasileiros oficialmente dia 15 de janeiro de 2026