Em “Foge-me ao Controle”, Fernanda Young conta sua própria história – Foto: Bob Wolfenson

Susanna Lira gosta de filmar pessoas que provocam pensamentos políticos. Documentarista premiada, com mais de 50 títulos no currículo – incluindo “Torre das Donzelas”, laureado na Mostra de SP, além de curtas e séries, Susanna volta agora seu olhar inquieto para a poeta, apresentadora, escritora, roteirista e provocadora Fernanda Young, que morreu precocemente em 2019, aos 49 anos.

As duas se conheceram quando Susanna tinha 16 anos e estavam cursando uma escola técnica de comunicação no Rio de Janeiro. Susanna ficou imediatamente intrigada por aquela figura com visual punk, que, à época, frequentava inferninhos como o Crepúsculo de Cubatão. “Quando ela lançou (o livro) ‘Vergonha dos Pés’, fui imediatamente comprar, porque estava muito curiosa. Tempos depois, fui entrevistá-la para um programa que fazia no GNT sobre maternidade. E ela me deu o maior depoimento sobre como a gravidez é uma coisa brutal para a mulher. Ela teve depressão pós-parto. Ela tinha acabado de ser mãe e pensei como ela havia sido honesta, fiquei com aquilo na cabeça”, conta Susanna, de sua casa no Rio, enquanto se recuperava de um pequeno acidente sofrido no set de seu novo filme, o thriller “Salve Rosa”, estrelado por Karine Telles e Klara Castanho. Quando abriu um edital em Niterói, sua colaboradora Marcella Tovar sugeriu que elas escrevessem um projeto sobre Fernanda. O mergulho no universo literário foi intenso, e o resultado, “Fernanda Young: Foge-me ao Controle”, chega agora aos cinemas.

Para fazer jus à sua retratada, Susanna evitou os moldes de um documentário tradicional: sem entrevistas, quem conta a história é a própria Fernanda, de forma não cronológica, labiríntica e poética. Para criar essa narrativa quase delirante, Susanna pegou emprestadas memórias de cineastas que, assim como Fernanda, haviam sido considerados “almas imorais” na sua época, como Man Ray, Maya Deren, Joseph Losey e Dziga Vertov, além de recuperar imagens de performances emblemáticas e desenhos de Young.

Foto: Arquivo pessoal

Iconoclasta, Fernanda teve um relacionamento de 26 anos com o roteirista Alexandre Machado (com quem assinou, entre outras obras, a série “Os Normais”), e com quem teve as gêmeas Cecília Madonna e Estela May. Em, 2010, o casal adotou duas crianças: Catarina Lakshimi e John Gopala. “Foge-me ao Controle” é, portanto, um filme de montagem. Durante o processo pela busca das imagens, Susanna contou com a colaboração de Clara Eyer e Ítalo Rocha, “sem eles, eu não teria feito esse filme. Resolvi fazer o filme com a literatura e o material que ela deixou. Ela tinha um senso estético muito forte. Queria traduzir esse lado das performances dela, como “A Louca Debaixo do Branco”, sobre essa questão da noiva (que virou uma exposição no MIS em São Paulo).”

Quando Susanna recebeu o material reunido para o filme, percebeu que tinha um grande tesouro nas mãos, e que daria até para fazer mais filmes sobre ela. Você faria mais um? “Sim, faria. Espero que façam vários filmes sobre a Fernanda, porque ela merece. Ela é fascinante. Tem vários livros dela que eu levaria para a ficção facilmente.”

A narrativa segue, de forma bastante livre, a tríade de temas que eram caros à Young: o amor, o tempo e a morte. “Quando o Alexandre viu o filme, ele me disse: ‘acho que esse seria um filme que a Fernanda teria dirigido’. Esse foi o maior elogio que eu poderia ter recebido na vida. Ele foi muito importante durante este processo, acompanhou tudo e não me deixou desistir. Por isso, acho que o amor ganha essa proporção enorme no filme.” Como ela dizia: “o amor iguala a todos. Todo mundo sofre igual.”

Porém, para a diretora, suas frases favoritas no filme são outras: “eu não reverencio os coronéis da cultura” e “eu aceito não ser querida”. A primeira explica um pouco as reações extremamente violentas com que as obras de Fernanda eram recebidas pelos críticos. Ela se negava a fazer parte das panelinhas intelectuais de sua época. E, para piorar as coisas, declarou que “o Brasil é um País de cafonas”. Nada mais político que isso. A outra é tema trabalhado na terapia. “Nós, mulheres, fomos criadas para sermos agradáveis, queridas, não podemos ser indesejáveis. Temos que aceitar as coisas como são. E quando você assume não ser querida, significa que você está abrindo mão daquele papel que te deram a vida inteira. E ser assertiva e falar o que pensa, é o que você deseja. Isso implica em não ser querida por muitas pessoas. Isso foi tão libertador pra mim. Eu vivia na angústia de querer agradar fulano ou ciclano, e agora desencanei.”

Sem medo de dar spoilers, o filme termina com Young declarando que “na morte, há uma coisa libertadora: que você não precisa mais ser perfeita”. Para Susanna, Fernanda tinha um perfeccionismo e um rigor com ela mesma. “Com a estética dela, com o que escrevia, com a produção intelectual. Todos nós temos um pouco disso. Então, a escolha daquele final é muito acalentadora. No sentido de que, um dia, todos esses personagens que a gente cria para sobreviver acabam. Portanto, a morte não deve ser tão ruim assim. A morte pode ser um alívio. Pode ser uma coisa louca o que estou falando, mas eu sinto dessa forma.”