Da esq. para a direita: Fernando Siqueira e Fernando Grostein ou FernandoS, como anuncia o projeto musical

Foto: Sthef Narciso

Fernando Grostein e o parceiro Fernando Siqueira lançam o projeto FernandoS, que narra a jornada fora do Brasil e a transformação de traumas em cura. “Chegou uma hora que ficou uma energia de muita ebulição e quase insuportável, que foi necessário transformar em outra energia, uma energia de cura, porque estava ficando insuportável”, diz ele após deixar o Brasil sob ameaças, no meio do antigo governo. O caso de homofobia se deu com ataques na internet após o cineasta falar abertamente sobre homossexualidade no YouTube e ao explorar a masculinidade “catastrófica”, como sugere a sinopse, do ex-presidente Jair Bolsonaro no documentário Quebrando Mitos (2022).

Aproveitaram que estavam em outro país e transformaram esses traumas em música em uma jornada de autodescoberta para aliviar transtornos psicológicos. E não só isso. Entenderam que tal trilha precisava de um complemento audiovisual, daí surgiu o projeto Necklace – filme e EP, uma produção de Lázaro Ramos e Taís Araújo, que ainda traz Jaques Morelenbaum como entrevistado, e também contribuiu com as faixas do projeto.

SHOWS

Com ingressos esgotados, eles se apresentam na Bona Casa de Música com o projeto Necklace em São Paulo nesta quinta-feira (24.10) – show extra na próxima terça (28.10) – após performance apoteótica no Manouche, do Rio de Janeiro, em meio à programação do Festival do Rio, e no icônico Whisky a Go Go, de Los Angeles. O show se ambienta no filme-documentário em um formato que mistura violão, teclado, sintetizadores e voz. No setlist, músicas inéditas, versões acústicas e uma homenagem a uma cantora LGBTQ.


A música sempre esteve presente na vida de Siqueira, que estudou diferentes instrumentos e participou de corais escolares, onde às vezes até fazia solos, o marido o incentivou a estudar canto para teatro musical após assistirem ao filme The Greatest Showman. Leia, abaixo, trechos da entrevista com a dupla:

Harper’s Bazaar – Como surgiu a ideia do projeto? O filme ou a música que veio primeiro?

Fernando Grostein – Para ser sincero, não sei dizer. Acho que foi acontecendo de forma orgânica. Estávamos passando por uma crise de saúde mental muito forte, alimentada pelo excesso de redes sociais e o vício nos algoritmos. O projeto acabou sendo uma resposta a isso, algo que foi pipocando de diversas fontes. Começamos a perceber que precisávamos transformar essa energia negativa em algo positivo.

HB – E como foi esse processo de criar um projeto em resposta à crise de saúde mental?

FG – O projeto nasceu como forma de responder a todo o caos que estávamos enfrentando. Durante quatro anos, ficamos imersos no filme Quebrando Mitos, que falava da masculinidade tóxica do governo (Jair) Bolsonaro. Ficamos ouvindo a voz dele e vendo os danos que ele causou. Isso nos intoxicou profundamente. Foi uma experiência muito difícil, e a música surgiu como uma forma de limpar essa intoxicação e aliviar o peso de tudo aquilo.

HB – O Fernando (Siqueira) citou que a música sempre esteve presente na sua vida. Mas como foi o processo de descobrir sua voz por meio dos sentimentos?

Fernando Siqueira (FS)Taylor Swift teve um papel importante na minha vida, especialmente durante a adolescência. Costumava me isolar com meus fones de ouvido, e ouvir as músicas dela me ajudava a me entender como pessoa. Quando lançou o álbum 1989, foi um marco para mim. A primeira faixa já me fez sentir que era ok ser diferente, ser quem eu sou. Ela me deu uma sensação de pertencimento e fez com que eu me sentisse ouvido.

HB – E quando começou a compor suas próprias músicas?

FS – A música sempre fez parte da minha vida. Desde pequeno, eu tocava vários instrumentos e fazia parte de corais na escola. Mas foi durante a pandemia que comecei a compor de verdade. Foi uma forma de processar tudo o que estava sentindo. O Fernando Grostein sempre me incentivou a explorar minha voz, e isso acabou se transformando nesse projeto. A música se tornou um espaço para eu me encontrar e expressar o que estava dentro de mim.

HB – Como vocês decidiram combinar música e visuais nesse projeto?

FG – Tudo começou de maneira bem natural. As músicas do Fernando traziam temas pesados, como vingança, abuso e gaslighting, e percebemos que essas emoções precisavam ser traduzidas em imagens. Começamos a filmar visuais que dialogavam com essas músicas, e isso nos ajudou a entender melhor o que estávamos criando. Foi aí que percebemos que estávamos desenvolvendo um projeto que falava sobre saúde mental e tinha um propósito curativo.

HB – Vocês mencionam muito o trauma. Como ele influencia o trabalho de vocês?

FG – O trauma é um território no qual eu sempre trabalhei. Durante o Quebrando o Tabu, por exemplo, entrevistei 176 pessoas sobre a guerra às drogas. Trabalhei também em Carcereiros e, mais recentemente, no documentário Sabores e Fronteiras (parceria com Claudia Calabi) sobre a gastronomia palestina e israelense. Eu sempre tive interesse em explorar a linha de frente do trauma. Isso faz parte da minha carreira como cineasta, e nesse projeto não foi diferente, já que sentimos essa necessidade de abordar as crises de saúde mental pelas quais passamos.

HB – Para o outro Fernando… Como a música ajudou você a lidar com o trauma?

FS – A música tem sido uma ferramenta catártica para mim. Escrever músicas me ajudou a organizar e processar sentimentos complexos, e até ouvir certas músicas me trouxe alívio. Acho que a música tem esse poder de te ajudar a processar emoções, seja um trauma, uma perda ou até uma alegria. Ela oferece um espaço seguro para você explorar o que está sentindo, e, para mim, isso foi fundamental durante esse processo. Ela me ajudou a dar sentido ao que estávamos passando.

HB – Qual foi o papel de Thaís e Lázaro Ramos nesse projeto?

FG – Eu conheço a Thaís desde a adolescência, somos amigos há muito tempo. Recentemente, nos reencontramos em um projeto que eles têm, O Topo da Montanha, uma peça sobre Martin Luther King. Nós ajudamos a filmar a viagem deles para Memphis, onde visitaram o local onde King foi assassinado. Quando começamos nosso projeto, pedimos a ajuda deles para nos apoiar, e eles trouxeram não só o prestígio deles, mas também conselhos valiosos e uma força que nos motivou a seguir em frente. Eles são parceiros que admiramos muito.

HB – Como é ser um artista independente no Brasil e nos Estados Unidos ao mesmo tempo?

FG – Ser artista independente já é um grande desafio no Brasil, e é ainda mais difícil nos Estados Unidos. Nossa produtora está sediada em Los Angeles, mas também temos uma filial no Brasil. Estamos lidando com a complexidade de ser independentes em dois mercados muito diferentes. E o fato de apenas 1% dos latinos ter espaço na indústria de cinema dos EUA, sendo que muitas vezes nem reconhecem os brasileiros como parte desse grupo, torna tudo ainda mais complicado. Mas estamos orgulhosos de representar nossa cultura lá fora.

HB – O que podemos esperar do futuro do projeto?

FG – Estamos apenas começando. Vamos concluir os primeiros passos do projeto agora, mas nosso plano é continuar desenvolvendo até o Setembro Amarelo do ano que vem. Depois da exibição no Festival do Rio, vamos trabalhar em novos shows e apresentações. Estamos muito empolgados com o que vem pela frente.

HB – Podem compartilhar alguma curiosidade dos bastidores do projeto?

FG – Hoje em dia, muitos projetos são financiados de acordo com os algoritmos das plataformas, que tendem a ser pouco ousados. Isso faz com que as produções fiquem parecidas umas com as outras. Nós decidimos arriscar, pegamos nossas economias e apostamos nesse projeto porque acreditamos que é necessário e importante. É um risco, mas estamos muito envolvidos nisso porque sentimos que precisamos contar essa história.

HB – Algo mais que queiram acrescentar?

FS – Já fizemos alguns shows, inclusive um em Los Angeles, no Whisky a Go Go, que é uma casa de shows lendária. Ela já foi trampolim para grandes bandas como The Doors e Guns N’ Roses. Também estamos muito felizes por trabalhar com Jacques Morelenbaum, que tem uma longa história com artistas como Tom Jobim e Caetano Veloso. Ele assina o cello do filme inteiro, e sua colaboração foi fundamental para dar vida a essa narrativa.

HB – Para encerrar, quais são os próximos passos?

FG – Estamos desenhando os próximos passos agora, e a ideia é continuar com os shows, levar nossa música para diferentes públicos e concluir o filme no próximo ano. Estamos muito focados em expandir esse projeto e levar nossa cultura para fora do Brasil, criando conexões entre a cena brasileira e a americana.