Foto: Brigitte Lacombe


Por Paula Jacob

Uma jovem mulher transita nos corredores do Museu do Louvre, em Paris, enquanto admira quadros diversos. Mas não quaisquer um: telas com retratos de mulheres em diferentes situações, que se repetem ao som de uma locução que narra conteúdos artísticos diversos. Assim começa o curta-metragem Fragments of Venus, de Alice Diop, lançado no Festival de Veneza como parte do projeto Miu Miu Women’s Tales. A cineasta, conhecida pelo filme de sensibilidade ímpar Saint Omer (2022), tece uma história a partir do movimento do olhar, do observar: do ver, mas também do ser visto. E, assim, questiona quem tem o poder de tal ato e a quem se reserva a cena de posar (ou flanar). 

Foto: Brigitte Lacombe

Entre os quadros que tocam a tela de seu filme, mulheres brancas desnudas em cenas idílicas ou em grupos familiares em cenas domésticas reforçam a visão idealizada dessa figura feminina, enquanto às mulheres negras restam alguns cantos, sombras e figurações subservientes em telas de tamanho (e importância) histórica. Até a chegada de Retrato de uma Mulher Negra (1800), de Marie-Guillemine Laville-Leroulx.

 

O quadro não cede de suscitar discussões no campo da história da arte por conta de sua relevância ético-social-narrativa, que coloca no centro, em escala inédita, uma mulher negra em estado de “nobreza serenidade e plácida grandeza”, como define Anne Lafont no livro Uma Africana no Louvre (Bazar do Tempo). Para a pesquisadora, essa construção revolucionária acontece “tanto do ponto de vista artístico quanto histórico” por conta de uma “elaboração de uma imagem nova da africanidade”. 

Foto: Brigitte Lacombe

Ponto-chave para a narrativa de Diop que, de dentro do museu, parte para as ruas de Nova York e admira, tal qual a personagem vivida por Kayije Kagame, mulheres negras vivendo o cotidiano do Brooklyn: entre parques, metrô, conveniências e restaurantes. Fazendo um aceno ao poema Voyage of the Sable Venus (2015), do poeta premiado Robin Coste Lewis, a cineasta constroi a possibilidade do gesto e do aceno aos corpos antes marginalizados não só pela história da arte e seus artistas, mas também pelo cinema e seus cineastas.  

Foto: Brigitte Lacombe

“Minha recente estadia como professora na Universidade de Harvard, me nutriu e me permitiu questionar o que significa ser uma mulher francesa e negra na sociedade francesa”, comentou a diretora em coletiva de imprensa. Essa homenagem em movimento, que também contempla as obras de Robin Coste Lewis, Claudia Rankine, Nona Faustine e Saidiya Hartman, reforça a própria alegria de ver mulheres negras preencherem as ruas de uma cidade como Nova York. “É uma autocelebração, um gesto de reparação.”

Foto: Brigitte Lacombe

bell hooks define o cinema como uma possibilidade mágica por sua capacidade de “transformar a realidade em algo diferente, bem diante dos nossos olhos”. No livro Cinema Vivido (Editora Elefante), a crítica cultural e pensadora estadunidense diz ainda que tal expressão artística “oferece uma versão reimaginada, reinventada da realidade. Pode parecer familiar, mas, na verdade, é um universo à parte do mundo real”. O que vem ao encontro da proposta silenciosa, minimalista e observadora de Alice Diop em Fragments of Venus: uma capaz de enxergar o passado com suas falhas e fissuras para, então, conseguir projetar no hoje outros pontos referenciais para as cineastas contemporâneas e as que virão a seguir. 

Você pode assistir ao curta pelo canal do YouTube da Miu Miu, assim como os outros 29 filmes apoiados pelo projeto Miu Miu Women’s Tales.