Filme de Laís Bodanzky mostra Dom Pedro I como herói byroniano

Foto: Divulgação/Fabio Braga

Por Manoela Cesar

A cena não dura mais do que 40 segundos, mas traz à tona uma polêmica que, há quase 200 anos, faz historiadores divergirem: teria Dom Pedro I agredido Dona Leopoldina? E, se em caso afirmativo, teria este fato alguma responsabilidade na morte dela? No corajoso A Viagem de Pedro, primeiro longa-metragem da diretora e roteirista Laís Bodanzky, a resposta da produção para esta e outras questões colocam em xeque o lado heroico do Pedro I em atormentados flashbacks.

À bordo da fragata inglesa que o leva de volta a Portugal, em 1831, o fragilizado desbravador, bravamente interpretado por Cauã Reymond, sofre diversas alucinações com o passado e, entre elas, relembra o momento em que segura violentamente a esposa pelos braços e a atira no chão do Paço de São Cristóvão. Em outra cena, a Imperatriz, já em seu leito de morte, delira de febre e vocifera contra Domitila, a amante de Pedro, responsável pelas humilhações que a fizeram definhar em depressão nos seus últimos anos de vida. “Leopoldina, me desculpa, me perdoa”, suplica o personagem de Cauã, enquanto corre pela embarcação, angustiado de culpa.

Narrado pelas lentes femininas de Laís, em uma tela intencionalmente claustrofóbica de 3:4, o argumento do filme reacende um debate que vinha sendo colocado para debaixo do tapete. Citando o fatídico dia 20 de novembro de 1826, o roteiro mexe em um vespeiro no qual muitos historiadores preferem não colocar a mão. Como os registros em torno deste episódio são bastante nebulosos, a discussão costuma ser abafada, tanto no Brasil quanto em Portugal. Na Áustria, livros de história falam abertamente que “Leopoldina morreu perto de completar 30 anos, em função de um aborto, ocasionado por um chute forte em sua barriga dado pelo marido”, como afirma Katrin Unterreiner, historiadora austríaca e autora de mais de 20 livros sobre o império Austro-Hungaro, em sua pesquisa The Habsburgs, A portrait of an European Dynasty.

Filme de Laís Bodanzky mostra Dom Pedro I como herói byroniano

Foto: Divulgação/Fabio Braga

Um dos poucos historiadores brasileiros com coragem de se posicionar sobre o assunto, Clóvis Bulcão afirma que parece ser, sim, muito plausível que Leopoldina tenha sofrido “algo terrível” naquele dia. Para ele, a tese da agressão no momento que antecedeu a partida de Pedro para a Cisplatina foi espalhada na Áustria, ainda em 1826, pela própria família Habsburg. “Leopoldina e Pedro tiveram uma briga muito dura no dia 20 de novembro. No dia seguinte, ela surge com hematomas, machucados na perna e tem um aborto dias depois”, ressalta. “No dia 11 de dezembro, ela morreu de forma muito solitária, muito triste e com requinte de violência. Acredito, sim, que Pedro a tenha agredido fisicamente. Aborto, hematomas… isso não vem do nada. E a verdade é que moralmente ela já estava morta.

Laís Bodanzky compartilha desta opinião: mesmo que a agressão física não seja comprovada, a já reconhecida agressão verbal e moral que Pedro lançava sobre a Imperatriz já seria motivo para culpá-lo por triste morte. “O recorte que escolhi fazer vai na contramão deste imaginário heróico e caricato que os brasileiros costumam ter sobre Pedro I. Depois de tanta pesquisa, chegamos a um Pedro que eu jamais previ que chegássemos”, conta a diretora, que destaca a leitura das obras de Octávio Tarquinio de Sousa, Neil Macaulay e do livro Olhares Cruzados, editado pela Embaixada da Áustria, entre outros.

Obra ficcional

Filme de Laís Bodanzky mostra Dom Pedro I como herói byroniano

Foto: Divulgação/Fabio Braga

Em suas buscas por documentação, Laís tentou de todas as formas ter acesso ao diário de bordo que Pedro teria escrito nesta viagem. Diante das constantes negativas do Museu Imperial – local onde o suposto diário estaria guardado –, Laís entendeu a lacuna como uma oportunidade de viajar com Pedro em um drama psicológico. Embora ficcional, o roteiro é o tempo todo pontuado por recordações de momentos decisivos na vida do monarca. Mais do que rebater visões já estabelecidas deste personagem, Laís buscou acessar os conflitos internos do Imperador e evidenciar a sua vulnerabilidade, na tentativa de humanizar a figura imortalizada em estátuas no Brasil e em Portugal.

“Mesmo que a historiografia oficial não reconheça uma das cartas que chegou a mim pela Embaixada da Áustria – porque ninguém viu ainda o documento original –, encontrei naquelas linhas um tom de sofrimento muito forte, que, independentemente de ser ficção ou não, me conectou com a dor de Leopoldina e serviu de norte para o tom do filme. Esta carta é encerrada com a frase de uma Leopoldina que perdoa o marido. Mas eu? Eu não o perdoo”, ressalta. Ao final do filme, a voz que a atriz Luise Helger empresta à Leopoldina na leitura, em alemão, de uma carta fictícia, ecoa na sala de cinema como se representasse a voz de todas as mulheres violentadas em casamentos abusivos. “A culpa é a única mulher que você merece ter ao lado”, sentencia.

Cauã Reymond: masculinidade tóxica, ontem e hoje

Filme de Laís Bodanzky mostra Dom Pedro I como herói byroniano

Foto: Divulgação/Fabio Braga

Pouco antes da pré-estreia carioca ter início, Bazaar conversou com o idealizador e produtor do filme, Cauã Reymond, em uma sala reservada do Estação NET Botafogo, na capital fluminense. Ele acredita que o longa tem um papel importante na atualização deste debate e sirva como convite para uma reflexão contemporânea sobre os abusos que homens ainda cometem no Brasil do século XXI. “A masculinidade tóxica era praticada abertamente e era muito comum na época de Dom Pedro I, que poderia ser um liberal na política mas que era um verdadeiro déspota nas questões pessoais”, analisa.

Segundo Cauã, o monarca achava que poderia fazer o que quisesse com os corpos das mulheres. “Infelizmente, isso continua acontecendo no Brasil. A diferença é que hoje a gente está fazendo isso ser colocado no lugar que deve estar: é um crime. Fico muito feliz em ver que o povo brasileiro está mais maduro, documentando e investigando estas violências”, conta ele, que fez uma longa travessia interna de desconstrução do herói.

Esta é a segunda vez que se coloca como este personagem. “É divertido lembrar disso! Eu tinha 10 anos de idade, estava na terceira série, e vivi Dom Pedro I no teatrinho da escola. Ali, eu era o herói, com aquela vassoura, que na minha cabeça se transformava em um grande garanhão de desenho animado, e minha espada de papel, que eu via com uma super espada de aço! Então, desconstruir este personagem dentro de mim e dar vida a um Pedro totalmente vulnerável, agressivo, impotente, foi um processo, acima de tudo, muito surpreendente”, narra.

Reymond conta que, em nenhum momento, desejou construir um personagem que gerasse qualquer tipo de empatia ou compaixão no público. Pelo contrário, uma vez que, neste aspecto, encontrou um desafio. Extremamente afetuoso em sua trajetória pessoal, o ator empresta carisma ao seu Pedro mesmo sem querer. “Gosto de acreditar que Pedro foi mal orientado. Ele não recebeu nem de longe uma educação que se equipare à que Leopoldina recebeu, por exemplo. Sempre foi muito solto em sua juventude no Brasil. Havia uma enorme compulsão por sexo, algo que parecia uma doença mesmo, talvez para cobrir a ausência de afeto de sua mãe. E assim como penso que Pedro poderia ser melhor se recebesse uma educação melhor, vejo um paralelo com o nosso País. Assim como Dom Pedro I, o Brasil pode ser melhor se tivermos uma boa educação disponível para a população. Infelizmente, vejo um reflexo deste imperador na forma como a gente conduz este País ainda. Espero que o filme gere reflexões e mudanças”, pontua.

**Manoela Cesar é jornalista à frente do clube de leitura Colher de Chá Books, focado em reunir mulheres para ler mulheres. 

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Harper’s Bazaar Brasil.