Cena de “Mãos à Obra”, de Valérie Donzelli – Foto: Divulgação

Por Paula Jacob

Em cartaz no Brasil pelo Festival de Cinema Francês, “Mãos à Obra” já tinha ganhado a crítica internacional durante o Festival de Veneza, em agosto deste ano. Isso porque o novo filme de Valérie Donzelli apresenta uma adaptação bonita do livro “À pied d’œuvre”, de Franck Courtès, com uma atenção especial para os desdobramentos da precariedade do trabalho no mundo contemporâneo. Na história, Paul (Bastien Bouillon) decide deixar a carreira frutífera como fotógrafo para investir em um desejo antigo: ser escritor. Porém, diferente do que ele idealizou, a profissão não lhe permite viver com conforto em uma Paris cada dia mais cara. Entendendo seu novo cenário, acaba optando por oferecer pequenos serviços (reparos, caronas, mudanças) em um aplicativo que conecta contratante e contratado sem contrato fixo.

“Minha amiga e montadora Pauline Gaillard que indicou a leitura. Por acaso, tinha gostado de uma entrevista do escritor que ouvi na rádio e a coincidência me fez decidir adaptá-lo”, conta à BAZAAR. “Mudei poucas coisas: a idade do protagonista, que é mais jovem no meu filme; a presença do pai no lugar da mãe dele. Também acrescentei uma sensualidade que achei necessária na relação com um dos contratantes.” A seguir, a premiada atriz que virou cineasta conta mais detalhes deste drama com profundidade subjetiva e muitas cenas de tirar o fôlego para quem aprecia um bom enquadramento.

Valérie Donzelli – Foto: Divulgação

Harper’s BAZAAR – O filme traz diálogos muito fortes sobre a falsa ideia de liberdade versus a “escravidão moderna”. Como foi construir essa narrativa, contrapondo trabalho criativo e trabalho tradicional?

Valérie Donzelli – Era a parte mais complexa de adaptar. O filme não tem grandes reviravoltas, então eu queria transmitir a complexidade de ser artista, a dificuldade de criar e o fato de que isso não é uma postura, mas algo vital, que nos ultrapassa. No livro, ao tentar manter sua liberdade e fazer pequenos trabalhos, o personagem descobre a nova “uberização” das profissões. Quis falar sobre como hoje estamos todos explorados. Mesmo pessoas que ganham bem podem ser “escravos bem pagos”, sempre disponíveis, invadidos pelo trabalho e nem sempre fazendo algo que amam. Frank decide não continuar vivendo sem sentido, por isso larga tudo para escrever. Porém, logo percebe que não consegue viver da própria arte e se torna pobre. Ninguém aguenta essa radicalidade, essa liberdade. E é isso que assusta: a liberdade dos outros expõe nossa incapacidade de fazer o mesmo.

HB – Sobre essa “uberização do trabalho” que você menciona: como isso se manifesta hoje na França?

VD – Esse fenômeno é mundial. Na França temos os mesmos aplicativos: Uber Eats, Uber, serviços por plataformas. Nos EUA, Brasil, Alemanha, Japão, é igual. O sistema tornou-se universal. O perverso é que não existe legislação trabalhista, as regras vêm da plataforma. Você é avaliado por estrelas: boa nota significa ser chamado; nota ruim, você desaparece. Isso cria uma submissão total ao julgamento alheio. Ao mesmo tempo, quem presta esses serviços se torna invisível: chamamos, a pessoa vem, vai embora, e não olhamos para ela. Não sabemos quem é. É a completa invisibilidade humana.

Cena de “Mãos à Obra”, de Valérie Donzelli – Foto: Divulgação

HB – O pai cobra que ele escreva um best-seller, e a irmã também não o vê com bons olhos. Como você trabalhou essa relação entre sucesso e criatividade?

VD – Quando o pai diz que “não é difícil escrever um livro que funcione”, ele reforça essa injunção ao sucesso. Quis também contar a história de um homem branco, privilegiado, que decide abandonar o lugar confortável que esperam dele. Ele quer escrever algo vital e sincero – não algo pensado para agradar. Por isso, nem o pai nem a irmã conseguem entendê-lo; eles não estão nesse lugar absoluto da criação artística.

HB – A estética do filme é muito bonita, escura, isolada, quase claustrofóbica. Como foi trabalhar com fotografia e direção de arte para chegar nesse resultado?

VD – Queria uma luz bonita, estética, mas ao mesmo tempo natural — como se entrássemos na casa de alguém e víssemos a ambiência do lugar. Tudo é visto pelo olhar do protagonista, e eu queria mostrar como o olhar artístico se alimenta do mundo, das pessoas. Usei o Super 8 para representar a memória dele — essas imagens aparecem no fim, quando ele constrói o livro. É literalmente sua memória visual se juntando à escrita.

HB – Por fim, como você vê o mercado criativo hoje, considerando o paralelo com seu protagonista?

VD – O mercado criativo é um mercado – e um mercado lucrativo. Editoras procuram livros “que funcionem”. O cinema também: ao apresentar uma história, querem saber se ela pode ser vendida. Tenho uma amiga pintora que entrou numa grande galeria e passou a repetir sempre o mesmo trabalho porque é o que vende. Manter a liberdade artística é difícil. É sempre um compromisso encontrar a zona em que queremos estar. Quanto mais sucesso você tem, mais liberdade conquista, mas ainda assim é complicado. Quem consegue fazer o que ama e viver disso tem muita sorte.