“Esse crime, o crime sagrado de ser divergente, nós o cometeremos sempre”, nesse espírito disruptivo que desafia a mente normatizada viveu, por 52 anos, Patrícia Rehder Galvão, conhecida como Pagu. A autora homenageada da 21ª da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) – que acontece de 22 a 26 de novembro – nasceu em 9 de junho de 1910, em São João da Boa Vista (SP) e foi jornalista, dramaturga, poeta, tradutora, cartunista e crítica cultural. Atuou nos movimentos modernista e feminista, além de ter se dedicado ao ativismo contra o fascismo.
“A decisão de homenagear uma autora importante para o movimento Modernista de 1922, que não participou da Semana de Arte Moderna, passadas as celebrações de seu centenário, vem do desejo de explorar sua produção artística muitas vezes reduzida por perspectivas limitadoras. Essa homenagem traz luz também a outras marginalidades literárias pujantes que merecem uma nova mirada “, comenta o diretor artístico da Flip, Mauro Munhoz.
Pagu usou pseudônimos durante toda a vida: Patsy, Mara Lobo, King Shelter, Ariel, Pat, Léonie, Pt, Gim, Solange Sohl, Peste. A escolha das curadoras, Fernanda Bastos, jornalista gaúcha e editora de livros, e Milena Britto, professora da UFBA, traz luz à ampla produção artística de Patrícia Rehder Galvão que, assim como outras tantas extraordinárias artistas e escritoras, sofreram estigmatização social, que tolhe e constrange tudo o que estiver fora de certa ordem ou coerência esperada da razão organizada.
“Quantas escritoras se manifestaram em Pagu? Quantos universos a autora criou e expandiu por meio de suas produções? Muitas são as paisagens de dentro e de fora que ela nos mostra com suas múltiplas linguagens, todas trazendo em comum uma contestação incansável diante do mundo rígido”, explica Fernanda Bastos.
“Com seus modos de dizer e desenhar mundos, Pagu desenvolve uma paisagem em que são retratadas diversas mulheres brasileiras: operárias, mães, boêmias, artistas, as que aspiram à liberdade. É transformador olhar o presente por meio das lentes de Pagu”, complementa Milena Britto.
Se, durante sua trajetória artística, as muitas línguas faladas por Pagu enfrentaram incompreensão e até repulsa, hoje sua produção nos inspira reflexões que ultrapassam os limites da razão e nos convidam a decifrá-la a partir das pistas que sua estética representa como legado.
A pluralidade de gêneros incorporados no repertório artístico da autora faz dela uma aparição destacada na cena literária brasileira, ainda que tenha falecido em 12 de dezembro de 1962, sem o reconhecimento e a legitimação que muitos de seus contemporâneos usufruíram. Foi prolífica à sua maneira, dedicando-se a muitos projetos que sempre cruzavam linhas e normas estabelecidas, surpreendendo no desenho, cartum, tradução, poesia, prosa, crítica literária, panfleto político, caderno de croquis, correspondência, crônica, diário e performance. Publicou os romances “Parque Industrial”, em 1933, com o pseudônimo de Mara Lobo por orientação do partido comunista, considerado o primeiro romance proletário brasileiro, e “A Famosa Revista”, publicado em 1945 em colaboração com Geraldo Ferraz. Pelo pseudônimo King Shelter, lançou diversos contos policiais, reunidos posteriormente no volume “Safra Macabra”.
Imprensa e teatro
Pagu teve destacada atuação na imprensa, e participou de publicações como “Brás Jornal”, “Revista da Antropofagia”, “O homem do povo/A mulher do povo”, “A Platéia”, “A vanguarda socialista”, France-Presse, “Suplemento Literário do Jornal Diário de São Paulo”, “Fanfulla” e “A Tribuna”.
Para o teatro, traduziu grandes autores, muitos deles até então inéditos no Brasil, como James Joyce, Eugène Ionesco, Fernando Arrabal e Octavio Paz. Estão ainda, entre os feitos de Pagu, a entrevista que ela realizou com Sigmund Freud e a introdução da cultura de soja no Brasil, graças ao contato com o imperador chinês Pu-Yu.
Profundamente múltipla e engajada, sua obra e sua figura política têm sido abraçadas por grupos sociais que apontam no trabalho da autora um símbolo da luta contra as desigualdades e a estigmatização – em especial das mulheres e das feministas, que percebem na figura de Pagu um emblema da força feminina.