Nem sempre o que está bem em frente aos nossos olhos é perceptível. Demanda interpretação, conhecimento e outros viéses de mundo para poder, realmente, enxergar e se dar conta: existem outros Brasis para além da nossa bolha. Afinal, 48% dos brasileiros não leu um livro sequer em 2020, segundo a pesquisa Retratos da Leitura.
Ao dialogar com temas urgentes, a Festa Internacional Literária de Paraty (Flip) busca “Ver o Invisível” em sua vigésima edição, jogando luz em escritores marginalizados ou apagados historicamente. Assim como em outras indústrias do entretenimento, abre espaço para a discussão a fim de incluir quem não se vê retratado nas páginas das quais nos fazem sonhar acordado.
A diversidade começou na escolha dos curadores este ano, formados pela editora gaúcha Fernanda Bastos, pela acadêmica baiana Milena Britto e pelo crítico literário Pedro Meira Monteiro, professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos. Liberdade foi a palavra de passe para embarcarem nesse jogo de Tetris ao compor a programação de forma coerente. Entre as conquistas, o nome da maranhense Maria Firmina dos Reis (1822 – 1917) surge como a primeira homenageada negra – ela é, também, a primeira romancista negra do País, quando em 1859 lançou “Úrsula” –, cujos versos batizam os painéis durante a festa.
“Desejo muito profundo de dar voz, cara e potência a um Brasil escondido e que está em um momento tão difícil, mas tão também decisivo”, resume Monteiro. “As vozes periféricas, aquilo que está fora de um circuito mainstream, tudo que a literatura tenta contemplar ou vai se deslocando para esses lugares”, complementa ele sobre a “bagunça fértil e criativa” na escolha do line-up.
A estética adotada por Maria Firmina 200 anos atrás, de forma complexa, é o chamariz de sua obra, porque dialoga com a Flip deste ano. Milena narra que a autora não estava nem dentro de uma estrutura social, marcada pelo corpo, nem impedida, pois teve acesso à educação, à mobilidade e assimilou logo o fato de o lugar dela não ser o mesmo dos escravizados à época. “Também entendeu que não teria acesso à sociedade branca. Ao invés dela retratar ou representar as questões de negritude, teve que se desafiar de como iria escrever dentro desse lugar complexo, dessa fissura, digamos, racial”.
Trazendo à contemporaneidade, essas brechas se encaixam na Flip – fazendo um paralelo – a autoras e autores trans, LGBTs, negras, negros e periféricos. “Não estão lá porque trazem esse corpo deslocado ou invisibilizado. É porque essas pessoas têm que pensar como vão propor suas histórias, versos e publicações”, analisa.
Em um País que luta para sair das amarras coloniais, marcado pela violência física e apagamentos simbólicos, celebrar o legado como o de Maria Firmina, que somente na década de 1970 emerge como voz dissonante, resultado de leituras contra-hegemônicas de pesquisadores e pesquisadoras, morta aos 95 anos sem qualquer prestígio, honrar seu legado se faz urgente. “Reforçar esse sentido da literatura é o motivo de a gente gostar tanto de ler. Não necessariamente vai se identificar o tempo todo com aquilo, mas aquelas histórias são incríveis. A gente não está no Brasil, por exemplo, de Úrsula, mas se emociona e vive com aqueles personagens. Sente falta deles”, pontua Fernanda.
Em uma pequena bibliografia desbravada após pesquisas minuciosas, Maria Firmina destaca-se por sua poesia, organizada em antologias, compilações e coletâneas. Sua poética de pertencer e não pertencer ao mesmo tempo, o jeito do qual se refere ao País enquanto lar está presente não só no romantismo, mas no realismo e no parnasianismo. “Versos muito fortes, junto com versos muito simples. E uma busca mesmo de uma sonoridade para ela ser acolhida”, arremata Milena.
Volta presencial
Nas edições que antecederam o Covid-19, a Flip acontecia sempre em julho, mas com as ondas pandêmicas que assolaram os eventos presenciais e evitaram a transmissão da doença, este ano a festa do livro será realizada na última semana de novembro, de 23 a 27 deste mês. Desde 2020, a festa havia trocado julho, seu mês oficial, para o fim do ano a fim de evitar aglomerações e, então, se reagrupar para ocorrer de forma online. A mesma fórmula se repetiu no ano passado, e agora volta a se concretizar presencialmente na cidade histórica sul-fluminense. A próxima edição, em 2023, deve voltar a ser realizada em julho, como sempre ocorreu no meio do ano.
Cela va de soi
Nem precisa dizer, diz a expressão emprestada ao subtítulo. As experiências literárias e estéticas pensadas pelos curadores estão em uma estrutura legitimada em outras esferas. Prova disso é o convite a Annie Ernaux para estar em Paraty, anterior à sua consagração com o Nobel de Literatura deste ano. “Trabalha a questão do pertencimento, do lugar, dos temas que as mulheres enfrentam, das suas questões de corpo”, celebra Milena.
A francesa de 82 anos foi consagrada com a honraria sueca por sua “coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos a partir de sua memória pessoal”. Em sua escrita, a francesa já versou sobre divórcio, câncer e aborto, sempre com linguagem simples.
“A gente sente tristeza pelo pai da Annie, sente vontade de ter estado com aquele homem. E é isso que nos conecta com a literatura”, reforça Fernanda. “Em sua escrita, Annie consistentemente e por diferentes ângulos, examina uma vida marcada por fortes disparidades de gênero, linguagem e classe. Seu caminho para a autoria foi longo e árduo”. Seu filho, David Ernaux-Briot, teve o documentário Os Anos Super 8 (também dirigido por ela) exibido na 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no mês passado. É um mergulho profundo à “autoficção” de seu tempo.