Imagem com cena do filme "Urchin", estrelado e dirigido por Harris Dickinson

Cena de Urchin – Foto: Divulgação

Por Paula Jacob

Um dos atores mais profundos de sua geração, Harris Dickinson nos mostrou a sua versatilidade em trabalhos que vão do ácido “Triângulo da Tristeza” (2022) até a minissérie de suspense “Assassinato no Fim do Mundo” (2023). Ano passado, viralizou nas redes sociais com o ambíguo personagem de de “Babygirl” (2024), ao som de “Father Figure”, de George Michael, e já está entre os rostos queridinhos de marcas como Prada e Audi. Mas nada disso parece colocar o jovem britânico fora dos trilhos artísticos.

Prova disso é a sua estreia na direção de um longa-metragem – ele já tinha feito o curta 2003 – com “Urchin”. O filme, vencedor dos prêmios de melhor ator e da crítica no Un Certain Regard do Festival de Cannes, acompanha de perto Mike (Frank Dillane), morador de rua que zanza por Londres em busca de lugares para dormir e dinheiro para seguir sustentando os seus vícios em drogas e álcool. Sua ansiedade e conhecimento das ruas o coloca num lugar de atenção constante, como se soubesse quem ou como fazer para conseguir o que quer.

Depois de um desentendimento com Nathan (interpretado pelo próprio Harris), outro morador de rua, ele acaba sendo acolhido por um homem com boas intenções. Ele lhe oferece água, comida e alguma ajuda. Conduzido a uma loja de bagels, acaba sofrendo uma tentativa de assalto de Mike, que é violento com ele, rouba seu relógio e foge para vendê-lo o mais rápido possível. Contudo, é interceptado pela polícia e preso, novamente. A pena dessa vez é de pouco mais de seis meses e, após cumpri-la, não só fica sóbrio, como também parece retornar ao cotidiano da cidade grande com mais esperança.

Imagem com cena do filme "Urchin", estrelado e dirigido por Harris Dickinson

Cena de Urchin – Foto: Divulgação

Agora acompanhado de uma assistência social, responsável por sua reintegração, Mike precisa arranjar um emprego, um local para morar e participar de reuniões e encontros sobre seu estado mental e físico. Essa nova chance também coloca o protagonista em contato consigo mesmo a partir de meditações guiadas e desvios daqueles que antes o faziam mal. Ele começa a trabalhar como auxiliar de cozinha em um hotel meia boca, conhece pessoas legais que o querem bem e parece finalmente ter agência de suas escolhas.

O esforço é visível, e torcemos por ele de maneira genuína. Mas algo sempre parece estar à espreita, aguardando um micro deslize para tomar posse de seu corpo novamente. E o que faz isso acontecer é o reencontro com a pessoa assaltada, um ano depois, que compartilha o seu ponto de vista da experiência e como isso afetou a ele e a sua família. Mike transmuta sua calma para um estado de indignação, como se visse em um espelho imaginário alguém de quem fugia, alguém inevitável esquecer a não ser enfrentando esse passado.

Imagem com cena do filme "Urchin", estrelado e dirigido por Harris Dickinson

Cena de Urchin – Foto: Divulgação

Nesse ponto de virada, há a possibilidade de superar isso e seguir em frente, dia após dia, hora após hora. Contudo, uma brecha se apresenta diante dos olhos ansiosos e do coração despedaçado, e ele retoma o ciclo de abusos, agressividade e isolamento. Aqui, o trabalho da direção de Dickinson e a atuação muito crua de Frank se encontram numa potência de sensibilidade, que foge das superfícies e adentra em um campo do inconsciente, do sonho, das imagens primordiais de um ser humano.

“Urchin”, do inglês, significa ouriço do mar e, ao mesmo tempo, criança levada, maliciosa (especialmente aquelas com roupas desleixadas). O protagonista é ambas as coisas: mal intencionado por questões familiares pouco visíveis na história, mas zero necessárias para compreender seu desamparo; e também uma pessoa que não se deixa tocar no interior, se defende com sua casca, escondendo algo muito íntimo – de si e dos outros. Um filme que carrega o jeito do diretor de também atuar, com ternura e profundidade.