Talvez de nome você não conheça Michelle Ferreira, mas se gosta de teatro, cinema e séries é bem possível que já tenha assistido a alguma obra dela. Dramaturga, diretora, atriz e roteirista, Michelle produz sem parar, gosta tanto de trabalhar que afirma não ter hobby, embora use seu tempo livre para, além de trabalhar mais, correr, ler e estar com os amigos.
Atualmente, ela assina o roteiro de “Não Foi Minha Culpa”, série recém-lançada pelo Star+ – a produção narra histórias de vítimas de feminicídios e violência contra mulheres de diferentes idades e classes sociais -, que traz em seu elenco Bianca Comparato, Lorena Comparato, Aline Dias, Fernanda Nobre, Karol Lannes, Ana Paula Secco, Gabrielle Joie, Sandra Corveloni, Virginia Rosa, Luana Xavier, Suzy Lopes, Simone Iliescu e Dandara Mariana. Tem tudo para ser um grande sucesso.
Feminista convicta, Michelle diz: “tem gente que encontra Jesus, tem gente que encontra Buda, eu encontrei o feminismo. Eu vou te dizer, o feminismo salvou a minha vida.” Não à toa, ela imprime em seu trabalho questões femininas, mas sem nunca perder uma grande história.
Estudou no Teatro Escola Macunaíma, fez Escola de Artes Dramáticas da USP, onde também estudou ciências sociais e de onde tirou seu lado marxista. “Eu acredito muito na função da arte para poder superar, tanto sentimentalmente quanto politicamente”, explica. “Sou filha caçula, adotada, de uma família de classe média que sempre prezou muito pela educação. Fiz intercâmbio, inglês, natação, balé e ginástica olímpica. Fui uma criança muito estimulada e investida. Minha formação em ciências sociais foi fundamental para a escrita que tenho hoje. Foi lá que tive contato com nomes muito importantes como Lilia Schwarcz e Fernando Haddad. Foram pessoas que contribuíram demais para o meu pensamento crítico, sem o qual não conseguiria nem fazer humor ou drama.”
Leia a seguir entrevista que Bazaar fez com a dramaturga.
Como tudo começa?
Eu tenho uma história até muito comum nesse sentido, até porque vejo que muitos amigos têm, que é “a gente começa quando criança”. A gente já começa torcendo o pepino na infância. Desde muito pequena eu sempre gostei de teatro, fazia peças na escola. Eu tenho 40 anos de idade, mas eu brinco que tenho 40 anos de carreira porque meu primeiro papel foi de menino Jesus no presépio, e isso é verdade. Mas começa na infância como uma brincadeira, um passatempo, uma necessidade de expressão. Com 14 anos eu volto para São Paulo, de Atibaia, onde morei por sete anos, para estudar teatro profissionalizante. Entrei no Teatro Escola Macunaíma, na sequência fui para os Estados Unidos para fazer intercâmbio e fiz teatro lá também. Quando volto ao Brasil, sigo no Macunaíma até me formar e tirar meu DRT [registro profissional da categoria]. Depois disso entrei na Escola de Artes Dramáticas (EAD) da USP, onde estudei também ciências sociais, e mais para frente ainda fiz faculdade de audiovisual, porque queria entender como tudo funcionava.
Durante meu curso na EAD, comecei a escrever para cenas, filmes, coisa que já fazia desde criança, eu escrevia muito. Em 2003, presto para o núcleo de dramaturgia do CPT, específico para dramaturgos, e passo, com a minha colega Silvinha Gomez, que é uma grande dramaturga, e não tinha mulher na minha turma, só eu e ela. Fiquei no CPT por oito anos, e comecei o meu trabalho no teatro, aí, peça, peça, peça, e é quando eu consigo concretizar algo que começara lá atrás que era escrever para o audiovisual.
Eu começo a minha carreira no teatro, mas me volto para o audiovisual. Tenho 13 peças escritas e 12 delas encenadas, incluindo a peça “Bárbara”, que é uma adaptação do livro de Barbara Gancia, “A Saideira”, cuja encenação é de Marisa Orth.
E qual foi sua primeira série para o audiovisual?
Foi “Entre o Céu e a Terra”, na TV Brasil, que era um “docudrama”. Na sequência escrevo um longa com a Sabrina Greve. No ano passado estreou na Netflix a obra “Amor Sem Medida”, com Juliana Paes e Leandro Hassum, que é uma adaptação minha de um filme argentino, que tem várias versões, mas a brasileira fui eu que fiz.
Você fez muita coisa bacana, não?
Eu vou fazendo, não olho muito para o retrovisor, eu faço. Eu gosto muito de trabalhar, eu não tenho hobby, minha paixão é o que eu faço, porque me divirto muito.
Já pensou em escrever um livro?
Eu tenho uma peça publicada, mas um romance eu nunca pensei. Os poemas que escrevo não mostro para ninguém… Mas eu jogo tudo isso dentro da coisa dramática, o que eu gosto de escrever é o drama. Acho que não tenho essa verve do autor romancista.
E como é seu processo de criação, vem naturalmente ou você precisa se concentrar mais?
Depende do projeto. Cada um deles tem uma forma diferente de fazer. No “Não Foi Minha Culpa”, que está no Star+, eu fui convidada. Então tinha a Juliana Rosenthal que é minha parceira, minha amiga, uma grande roteirista, que me chamou para fazer parte do projeto com ela. Ficamos meses e meses em uma sala estudando, conversando, depois escrevendo. E tal que quando a gente já estava para entregar os roteiros, nós já estávamos em uma simbiose tão gostosa, boa, frutífera que ela começava e eu terminava, ou eu começava e ela terminava, ela pensava e eu falava, e vice-versa. Porque às vezes um trabalho não rola tão legal, mas eu ando tendo muita sorte, porque me associo a pessoas muito talentosas e comprometidas, e nisso vamos fazendo amigos no trabalho. Então a gente vai se alimentando, vivendo muita coisa, lendo muita coisa. Ler é muito importante.
Você deve ser uma leitora voraz.
Sou menos do que eu gostaria, te confesso. Eu leio todos os dias, mas isso aqui [mostrando o celular] é uma desgraça (risos), ele come nosso tempo. Ler para mim é como correr, outra coisa que gosto de fazer. Eu tenho um ritual, que é depois do café da manhã, tiro uma hora para ler, depois vou para a academia correr. Na volta, fumo um cigarro e começo.
E o que você faz no seu tempo livre, embora tenha dito que não tem nenhum hobby?
Eu gosto muito de ler, de estar com os amigos, correr, ir ao teatro e ao cinema, ou seja, tudo o que está relacionado a isso.
Como você vê o momento atual da arte no Brasil?
Que assunto triste… Eu acho que os artistas brasileiros são incríveis. Eu não tenho síndrome de vira-lata nenhuma, eu acho que somos um povo que produz cultura da mais popular possível, da cultura que emana realmente do povo e das tradições, até mais, digamos, profissional. Acho que somos um povo muito criativo, a gente é muito bom, e é uma pena que vez ou outra, ciclicamente, toda vez que o campo progressista avança uma casa, ele tem uma resposta. Eu fiz ciências sociais, sou meio marxista, então eu vejo tudo isso como um jogo de forças, que tem quem está sendo o opressor e que está sendo oprimido. Dizer que não tenho esperança seria mentira, porque tenho esperança em muitas coisas… A luta é grande. Não se trata de quantidade de pessoas, mas de poder, porque a gente sabe que é uma quantidade pequena que detém o poder. A gente tem uma massa que não detém o poder nem coisa nenhuma, e essa é a história da humanidade. É meio desesperador, né? Porque a história ensina que a gente não aprende nada com a história. Eu acredito muito na função da arte para poder superar, tanto sentimentalmente quanto politicamente.
O que você está fazendo agora e quais são os próximos projetos?
Neste momento eu estou escrevendo um longa-metragem, uma comédia romântica, mas não posso dar detalhes ainda. Também estou escrevendo uma peça de teatro, um monólogo para um grande amigo meu e vou dirigir duas peças.
Ah, você dirige também?
Talvez seja a coisa que eu mais goste de fazer, junta tantas coisas, eu adoro dirigir. É tão bom você poder imprimir sua visão daquilo. Não é tudo que escrevo que dirijo e vice-versa, mas agora vou dirigir uma peça que escrevi. Eu tenho uma companhia de teatro que se chama Má Companhia Provoca, mas dirijo coisas fora da companhia também, uma delas será “Valência”, que deve estrear no ano que vem.
Que obras suas você destacaria? É difícil falar em mais importante porque todos os trabalhos têm sua importância…
Eu acho que a minha primeira grande peça, que foi quando as coisas começaram a acontecer, o famoso divisor de águas, foi “Os Adultos Estão na Sala”, que fez muito sucesso, então acho que ela inaugura esse momento. No audiovisual eu acho que “Não Foi Minha Culpa”, com certeza, é uma das coisas mais importantes que eu já fiz porque não só é uma obra artística etc. etc. mas ela tem uma função social muito urgente, e ela cumpre esse papel, eu recomendo muito, não porque fui eu e a Juliana que escrevemos. Ela fala sobre a violência contra a mulher, feminicídio, porque no jornal a gente fala da morte, e nós queríamos falar sobre a vida delas, dessas mulheres que perderam a sua vida de verdade, por um problema que é uma epidemia global. Até países que você acha que são socialmente bem resolvidos têm feminicídio.
Você é feminista?
Eu, graças a Deus… Tem gente que encontra Jesus, Buda, eu encontrei o feminismo. Eu vou te dizer, o feminismo salvou a minha vida. Quando eu tinha uns 20 e poucos anos eu não era feminista, e por que eu não era? Porque o patriarcado tinha me enganado de que era um problema superado. Eu tinha caído no conto da superação do problema. Só que aí você vai vivendo e vendo que as coisas são diferentes, que estão acontecendo. Foi o feminismo que me fez ver as coisas, o que é abuso, por exemplo, porque é muito bom dar nome às coisas. E quando a gente dá nome a gente consegue entender. Então, sim, sou feminista, demais, e acho que todo mundo tem que ser.
Você sendo uma feminista convicta, quando você está escrevendo coloca esse feminismo na obra?
Eu acho que só o fato de eu estar escrevendo já é um ato totalmente feminista. Uma obra de ficção, seja ela teatro, cinema, novela, precisa de forças antagônicas, é diferente do manifesto. Então, sim, muitas vezes eu coloco, mas tenho que equilibrar com outras forças. Por isso eu gosto de escrever para o audiovisual, porque tenho que me deslocar, eu nunca estou em mim. É mais uma necessidade de entender o outro, eu quero entender essa espécie que a gente é. Em termos de assunto e temática, sim também, tem muito a ver com essa temática na minha mais recente peça, ela é feminista até os ossos. A peça de teatro e o cinema não são um discurso, são uma história, e através dessa história você capta o discurso. Essa é a beleza da coisa.
Dentro do que você já fez tem algo que não seja ficção?
Tem esse trabalho que eu adorei fazer, do livro da Barbara Gancia, por exemplo, que é uma biografia, uma história dela, e que existe, que é essa pessoa maravilhosa que ela é, cheia de contradições, mas é uma história real. E a gente transformou aquilo em teatro, mas a matriz é uma história real. Tem o brilho da ficção, do entretenimento, mas é a vida dela, então, sim. O importante é uma boa história, ela pode ser real ou inventada.
Como você lida com as redes sociais?
Xi, eu sou mais voyer do que ativa. Às vezes eu me cobro, podia falar mais, me expor mais, eu uso as redes para vender meu livro, por exemplo, replico muitas coisas que acredito, mas eu não sou uma geradora de conteúdo, não.
No audiovisual, você gosta de acompanhar as gravações?
Eu não gosto. Sabe por quê? Eu adoro estar no set se estiver fazendo alguma coisa, se eu tiver um trabalho, como atriz, diretora, mas se eu estou ali como roteirista eu já trabalhei, não tem mais nada para eu fazer.
Você gosta de cozinhar?
Eu gosto de comer, mas cozinhar não tenho muita paciência no dia a dia. Eu tenho um amigo que diz que eu não gosto de perder tempo, ascendente em Áries, né? Meu namorado cozinha melhor do que eu, inclusive, mas eu faço as minhas coisinhas. Quando eu me predisponho eu faço, faço uma boa moqueca, sou boa no pesto.