
Sem título (1964), Mira Schendel (Foto: Ricardo Miyada)
Por Ana Paula Assis
A trajetória da artista plástica Mira Schendel (1919-1988) ganha destaque na mais recente edição do projeto Palavra, palavra, palavra no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. Reconhecida como um dos nomes mais influentes da cena contemporânea, a criativa passa a integrar o rico repertório do espaço, que tem como meta desde a sua gênese, apresentar exposições bem curadas de ícones femininos. O centro cultural já revisitou as trajetórias de Tomie Ohtake, Iole de Freitas, Anna Maria Maiolino, Leda Catunda e de figuras internacionais como Louise Bourgeois, Yayoi Kusama e Frida Kahlo. “É uma maneira de o Instituto perpetuar o legado de Tomie, ao mesmo tempo em que apresenta outras artistas fundamentais da nossa história”, explica Paulo Miyada, diretor artístico do espaço.
A exposição intitulada “esperar que a letra se forme” reúne mais de 250 obras, incluindo pinturas, monotipias, cadernos, objetos gráficos e uma instalação. A curadora Galciani Neves explica que o foco da compilação foi explorar a presença do signo gráfico, da letra e do texto na trajetória da criativa. “Embora a sua produção seja vasta, fizemos um recorte específico para investigar o quanto a palavra permeia a sua obra, não apenas como texto, mas como elemento visual”, ressalta Neves.

“A Pergunta” (1965), de Mira Schendel (Coleção Museu de Arte do Rio – MAR)
Nascida em Zurique – de ascendência judaica, tcheca, alemã e italiana – foi batizada Myrrha Dagmar Dub e imigrou para o Brasil em meio à ascensão do antissemitismo na Europa. Mesmo durante o difícil processo de deslocamento, sua habilidade com o design gráfico já se manifestava — ainda no navio, trabalhou como datilógrafa. Ao se estabelecer em Porto Alegre, seu laço artístico sempre caminhou lado a lado com o design e a ilustração. “Mira assinou capas de livros, cartazes e projetos editoriais, mostrando que sua vida sempre esteve entrelaçada com a palavra e o texto”, comenta Neves.
“Com uma produção interdisciplinar, transitou entre pintura, desenho, colagem, escultura e instalação, rompendo convenções tradicionais e criando uma linguagem visual própria. Foi uma das pioneiras no uso da linguagem e símbolos visuais, abordando questões filosóficas e espirituais em sua obra. Desafiou os limites das categorias artísticas, lidando com temas como silêncio, transcendência e questões existenciais. Seu trabalho foi tanto conceitual quanto visual, expandindo o vocabulário de arte no Brasil e incentivando a experimentação”, reforça Fernanda Feitosa, criadora e diretora da SP- Arte.

Mira Schendel, Sem título (1964) (Foto: Ricardo Miyada)
Embora a exposição não siga uma estrutura cronológica, a disposição permeia momentos cruciais de sua carreira, onde o uso poético e visual da palavra se torna cada vez mais consciente e sofisticado. “Nas obras de Schendel, vemos uma variedade de abordagens à palavra — desde rabiscos que remetem a garatujas infantis até composições tipográficas mais elaboradas”, observa Neves.
Aliás, essa espécie de ode à tipografia exerce um papel central na sua obra. “As letras têm uma autonomia própria em seus trabalhos, sem necessariamente compor palavras. O espaço em que se inserem sugere um acontecimento em si, assim como outros sinais gráficos — uma vírgula, um ponto ou uma exclamação ganham destaque”, acrescenta a curadora.
A experimentação material também esteve muito presente em todas as fases. “Mira era atraída por insumos simples e cotidianos, como papéis frágeis ou cadernos comprados em pequenas papelarias, e os incorporava em sua prática. Da mesma forma também usava a palavra como matéria-prima”, explica Neves. Ao valorizar o acaso e a improvisação, a artista não deixou de dialogar com grandes pensadores de seu tempo, como Haroldo de Campos, Vilém Flusser e Mario Schenberg. No entanto, nunca se prendeu ao academicismo em suas narrativas visuais — seu foco estava no fazer prático da arte.
Este caráter libertário também se reflete na montagem da exposição, que segue uma disposição sem barreiras visuais, permitindo uma aproximação íntima entre público e obra. Em sintonia com a simplicidade que marcou sua trajetória, muitas de suas peças ganharam apelidos despretensiosos como “droguinhas” e “toquinhos”, reforçando a ideia de que seu trabalho não exige um manual de interpretação, mas, sim, uma experiência sensorial e aberta. “Assim como Tomie Ohtake, Mira nunca assinou manifestos. Sua entrega é permeável a múltiplas leituras, sem a necessidade de títulos grandiosos ou instruções para entendê-la. Seu legado convida o público a uma vivência direta, corpo a corpo, com a arte”, arremata Neves.
SERVIÇO
Exposição Mira Schendel “esperar que a letra se forme”
Em cartaz até 02 de fevereiro
Endereço: R. Coropés, 88, Pinheiros, São Paulo