Foto: David Gary Lloyd

Por Adriana Lerner

Peças-chave das coleções de Martin Margiela têm sido cuidadosamente incorporadas à coleção privada Parodi Costume Collection, em Miami, nos Estados Unidos. Agora, o público pode ter acesso a este acervo na exposição Margiela: in the Void, em colaboração com a plataforma de vintage contemporâneo Byronesca. A mostra apresenta alguns dos principais ícones de Margiela, ao mesmo tempo em que cria uma narrativa em torno de lacunas nos looks que, propositalmente, não estão completos. É o primeiro olhar crítico sobre o trabalho desta casa de moda já apresentado na cidade.

A ideia da exposição é focar nos vazios, explorando a personalidade do designer, aprofundando nas lacunas literais e metafóricas que cercam cada peça – explica Gonzalo Parodi, diretor da Parodi Costume Collection. Gill Linton, fundadora e editora-chefe da Byronesque, conta que esta exposição é uma maneira de mostrar um lado diferente e invisível de Martin Margiela, em um museu progressista para um lugar dedicado ao passado. Ao afastar-se dos meios de comunicação, recusando entrevistas e retratos, Margiela criou um vácuo na história da moda, que sempre foi obcecada em transformar designers em ícones. Sua ausência e discrição transformaram o padrão do designer tradicional.

Foto: David Gary Lloyd

Na época em que era designer, Martin não gostava quando uma peça de roupa era escolhida por sua etiqueta ao invés do design. E, por isso, escolheu uma label totalmente branca anexada aos, agora famosos, quatro pontos nos cantos de sua etiqueta. O designer, fã dos anos 1970, adorava roupas vintage e reaproveitava roupas de anônimos. Não houve nenhum motivo ou processo ecológico por trás de sua linha artesanal. Tudo começou porque o preço das roupas eram mais baratos do que os tecidos novos, com oferta ilimitada. Margiela sempre foi muito transparente sobre seu processo de trabalho. Para a linha artesanal, identificava todas as roupas recuperadas para fazer cada peça, mantendo a alma e o simbolismo vivos das roupas originais.

Adorador dos mercados de pulgas, comprou prateleiras de jeans por alguns francos cada. Às vezes, andava pelas ruas apenas para observar cada objeto ao seu redor. Para ver detalhes inspiradores, como um Flâneur surrealista. Ele precisou cuidar de seu anonimato, para continuar seus passeios pelas ruas de Paris sem interrupção. Ele acha raro ter ideias novas e genuínas. Segundo Margiela, quando você tem essas ideias, você tem que apreciá-las, aprofundando-as com comprometimento. E ir até o fim. “Seu mantra de anonimato é um ótimo exemplo da independência e liberdade que são tão fundamentais para a criatividade e progresso conceitual”, cita Parodi.

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Quando Martin começou a estudar na Academia da Antuérpia, na Bélgica, os seus professores o aconselharam a mudar da área. Da moda para estudos de arte. Mas ele acreditava que suas ideias artísticas deveriam viver através das suas criações de roupas, ciente de que seu processo era original e singular. A força de Martin como designer era a sua consistência. Não tinha medo de forçar e repetir suas ideias, levando-as ao limite da criatividade inesperada. Ele queria ter certeza de que as pessoas entenderam cada dimensão de seus projetos.

Ele adorava brincar com restrições. E ensina esta lição: cada restrição torna você ainda mais criativo, um apelo a maior criatividade e mais originalidade. Embora Martin não gostasse da década de 1980 em seus primeiros dias na moda, os códigos de design da década criaram um impacto grande em torno de sua coleção de 2007, incluindo sapatos de salto alto e ombros largos. Ele abraçou os detalhes que não gostou porque sentiu que precisava se renovar.

Foto: David Gary Lloyd

Respeito à história

“O trabalho e o espírito de Martin Margiela ressoam em todas as dimensões do nosso trabalho e a missão na Parodi Costume Collection. Margiela era um amante do vintage, colecionava o passado com profundo respeito pela história, grande transparência quanto à origem e procedência, exatamente como nos fazemos aqui”, reforça Gonzalo Parodi. “Ele não desperdiçou material ou ideia e fez questão de reaproveitar e reciclar, como nós. No que diz respeito ao enquadramento da obra de Margiela na narrativa da coleção, encontramos afinidade, por exemplo, com as abstrações e a ética de Cristobal Balenciaga, a profunda criatividade e desenvoltura de Paco Rabanne, a abordagem desconstrutiva em Rei Kawakubo, e a ressonância da arte povera no início de Yohji Yamamoto.” Mas estes são apenas alguns exemplos. O trabalho de Margiela é uma referência contínua à história, às técnicas de construção, ao processo, descreve Gonzalo sobre o diálogo de sua coleção com a identidade do trabalho de Margiela.

Foto: David Gary Lloyd

“Vemos Martin Margiela, antes de mais nada, como um meta-designer. Vemos o artista e o pensador crítico operando simultaneamente. Seu trabalho está carregado de teoria do valor. Gosto de ler suas proposições não muito diferentes das de filósofos como Ludwig Wittgenstein ou Jacques Derrida. Cada coleção que Martin projetou proporcionou um resultado sistemático e desconstruiu a linguagem e o sistema da moda. Essa sensação de trabalhar fora do sistema oferece uma forma de visualizar o que chamamos de vácuo”, complementa Gonzalo. In the Void (No vácuo, em tradução livre), que dá nome à exposição, é um lugar onde não existem objetos facilmente reconhecíveis, um espaço que provoca pensamentos e evoca visões. “Organizamos uma exposição que convida o público a se juntar ao designer em uma jornada conceitual”.

É evidente que Margiela atuava como artista visual. Fabricou objetos, instalações e performances, cuja mensagem final era de que a moda se envolvesse continuamente na auto reflexão. Sua obra está carregada de temas surrealistas e técnicas dadaístas de apropriação, deslocamento e ready-mades intervencionados. A mostra apresenta o trabalho de Martin em instalações que também homenageiam o artista. Os visitantes são presenteados com um modo não-convencional de exibir moda. Encontram vários looks incompletos de Margiela em instalações que exigem informações para preencher as lacunas. No processo, a curadoria da exposição orienta através de textos as dimensões de Martin Margiela, o meta-designer-artista, que raramente são discutidos.

Foto: David Gary Lloyd


Coleção privada

Quando questionada sobre sua peça mais icônica do designer, Francisca “Paquita” Parodi, a fundadora da coleção, cita o casaco edredom, adquirido de um colecionador particular. Universalmente apreciado, ele pode literalmente ser abraçado como um dos maiores exemplos de um ready-made intervencionado na moda. O casaco edredom é uma ilustração inteligente, confortável e muito elegante de reaproveitar um objeto cotidiano e funcional em uma peça de roupa. Gonzalo Parodi afirma que Martin deixou a moda para se tornar um artista em 2009 e que Margiela: In the Void é uma homenagem à sua sensibilidade e metodologia como artista visual e pensador. “Acreditamos que Martin irá sorrir ao ver cada instalação, com uma certa sensação de déjà vu, e ficará positivamente impressionado com a forma como um pequeno museu do outro lado do Atlântico o vê como um dos maiores pensadores críticos da história do design de moda”.

Iniciada pela espanhola Paquita Parodi em meados da década de 1960, destaca-se como um testemunho da paixão pela preservação, restauração, exposição, pesquisa e educação em torno da história do design de moda. Enraizada em uma rica coleção privada em Miami, esta entidade tem um arquivo profundo, apresentando a moda de meados de 1800 até o final do século 20. Com um grande espaço de exposição, a coleção se envolve ativamente com grandes universidades e escolas de ensino médio, oferecendo oficinas, palestras e estágios para estudantes, contribuindo para a educação de moda em Miami.

Foto: Adriana Lerner