“Há uma memória em torno da Independência (do Brasil, celebrada nesta quarta-feira, 7 de setembro) que foi sendo forjada ao longo do século 19, onde o mundo político é dos homens”, narra à Bazaar a professora sênior no Museu Paulista da USP, Cecilia Helena de Salles Oliveira.
Até mesmo a data poderia ser questionada dada a complexidade histórica do que contaram nossos antepassados. Entre os nomes conhecidos, como o de Dom Pedro I, José Bonifácio, José Clemente Pereira, Feijó, Cipriano Barata ou Frei Caneca, há mulheres essenciais para essa movimentação. Maria Leopoldina e Maria Quitéria são alguns nomes apagados no primeiro século pós-separação colonial com Portugal e resgatados há 100 anos quando houve a celebração do centenário. Obras retratando essas mulheres voltam a ganhar luz na reabertura do Museu do Ipiranga, na capital paulista, fechado desde 2013 para restauro ao lado de mais 175 mil objetos do acervo.
Na história brasileira, a Imperatriz Leopoldina, por exemplo, teve um papel muito importante, atuando para fortalecer laços diplomáticos com outros países, como Estados Unidos, Inglaterra, Londres e a própria Áustria – de onde veio. Ao chegar à América, e se encantar com Dom Pedro e pelo Brasil, se enraizou à cultura e ingressou no mundo político, no conselho de Estado e no métier daqueles que circulavam na corte. “Ela está associada a dois elementos: por um lado, a maternidade. E é assim que ela vai aparecer no Museu Paulista, rodeada pelos filhos. Mas também como figura importante no mundo da diplomacia, além de manifestar seu apoio à separação de Portugal”.
Maria Quitéria surge como uma mulher pobre, livre, filha de lavradores, ingressou no Batalhão dos Periquitos (3º Batalhão de Infantaria, uma divisão militar do Império do Brasil comandada pelo Major José Antônio da Silva Castro) e se engajou nas lutas pela independência vestida de homem, na Bahia. Dela, temos o retrato feito por uma viajante inglesa (Maria Graham) em uma passagem pela Bahia. “Ela tinha descendência afro e indígena, mas no retrato, a pele dela foi clareada, está vestida de homem com uma saia por cima”. Elas são alguns exemplos, como Sóror Angélica e Bárbara Alencar (de Pernambuco) entre inúmeras anônimas.
As mulheres daquela época ou eram retratadas como coadjuvantes ou afastadas do ponto de vista institucional e da política, pois não podiam votar, ser eleitas e nem se candidatar. “Mas isso não quer dizer que não tivessem uma atuação importante na sociedade e na cultura. Ou que estivessem distantes de toda a participação. Documentos de época mostram exatamente o contrário”, conta a pesquisadora. “Encontramos donas dos seus próprios negócios, mulheres que substituíam os maridos e os filhos à frente de fazendas, de engenhos e que tiveram atuação muito ativa”. Fora essas mulheres mais enriquecidas, também mulheres escravizadas, libertas ou livres, que atuavam na produção do dia a dia, faziam pão para vender nas ruas das grandes cidades, limpavam as casas ou atuavam na lavoura.
Na época do Centenário (nos idos de 1920), as mulheres já tinham outra atuação na sociedade, além dos afazeres domésticos, por terem se tornado mão de obra nas fábricas atuando na industrialização brasileira, desde os fins do século 19. Naquele momento, nos anos de 1920, já ocupavam cargos importantes em instituições de cultura, como os institutos históricos e geográficos, que juntamente com os museus eram os grandes núcleos da produção de conhecimento no País.
A palavra independência tinha muitos sentidos naquele período. “A gente aprendeu um único sentido. A história do Brasil é contada (nas escolas) de maneira absolutamente simplificada”, conta Cecilia. Por isso, as imagens, objetos e toda a materialidade da cultura ou a visualidade dela projetam dimensões reflexivas e não são sinônimos da realidade. “Nos dias atuais, qual a aptidão de um museu? Ele não vai contar a história da independência. Vai propor, através das exposições, indagações, reflexões e dúvidas a respeito do que o visitante está vendo ali”, propõe. São representações do mundo, da história e da cultura, além de problemas históricos.
“Os atuais historiadores questionam aquilo que está lá e procuram mostrar outras possibilidades de interpretação. Importante perguntar: como aquela tela foi produzida? Aquilo é uma obra ficcional apresentada como se fosse realidade histórica. O que se quer contar com isso? Certamente, não é a história do Brasil.”
Novo museu
O novo plano museológico norteou a criação de 12 novas exposições (11 de longa duração e uma mostra temporária), contemplando cerca de 3.058 itens do próprio museu, 509 itens de outras coleções e 76 reproduções e fac-símiles vindas de outras instituições brasileiras, especialmente do Rio de Janeiro e da Bahia.
A maior parte dos objetos data dos séculos 19 e 20, mas há itens mais antigos, dos tempos do Brasil colonial. São pinturas, esculturas, moedas, documentos textuais, fotografias, objetos em tecido e madeira, conservados e preparados para fazer parte do novo projeto expográfico. O quadro mais conhecido do acervo, a icônica tela “Independência ou Morte”, de Pedro Américo, foi um dos primeiros trabalhos a serem restaurados, ainda em 2019, e estará em exibição no Salão Nobre. No total, o museu dispõe de 450 mil itens e documentos.
As mostras de longa duração são divididas em dois eixos temáticos: para entender a sociedade e para entender o museu. A exposição de curta duração, denominada Memórias da Independência, estará aberta por quatro meses a partir do dia 7 deste mês, quando o museu também abre suas portas.