
João Pedro Mariano e Ricardo Teodoro como Wellington e Baby – Foto: Divulgação
O diretor mineiro Marcelo Caetano tem um talento especial para criar novas formas de família. Desde Corpo Elétrico (2017), seu filme de estreia, essa temática já se fazia presente. Agora, em seu segundo longa, Baby — premiado em festivais como Rio, Cannes, San Sebastián e Nova York, essa ideia parece ter transbordado para fora das telas.
Os protagonistas, João Pedro Mariano, em sua estreia no cinema, e Ricardo Teodoro, desenvolveram uma amizade profunda fora do set. Na trama, eles interpretam Wellington e Ronaldo, respectivamente, e vivem um romance marginal e intenso, difícil de categorizar. Wellington, um jovem de 18 anos, conhece Ronaldo, um michê de 42 anos, com quem se envolve em uma paixão arrebatadora enquanto adota o codinome “Baby” para trabalhar nas ruas.
Embora seja um drama romântico gay, Baby também apresenta um forte componente musical, inspirado de forma inusitada em Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), clássico de Jacques Demy. Durante um encontro descontraído no mítico Cine Odeon, na Cinelândia, durante o Festival do Rio, Marcelo Caetano compartilhou detalhes sobre essa influência e sua visão para o filme.
Harper’s Bazaar Brasil: Ricardo, o que você acredita que o Marcelo viu do Ronaldo em você?
Ricardo Teodoro: É tudo que um ator espera: um desafio, um personagem difícil. Eu me lembro que,quando li o roteiro, me senti um felizardo por ele ter me escolhido. Ambos saímos de Minas e viemos para São Paulo em busca da arte.
João Pedro Mariano: Eu também sou mineiro, vim para São Paulo com 17 anos para estudar teatro na Praça Roosevelt. Essa é a semelhança que tenho com Baby, onde tudo acontece. No processo de preparação, morei por meses no Centro, absorvendo a essência da cidade.
HB: De que forma o centro é um personagem?
Marcelo Caetano: O Centro é frequentemente retratado como um lugar sórdido, mas, para mim, é um espaço diverso, de encontros entre diferentes origens e classes sociais. Dois filmes foram importantes nessa construção: A Hora da Estrela (1985), pelo ambiente das pensões, e Pixote, a lei do mais fraco (1980) pela cena deles nadando na fonte da Sé, que acho linda. Quis resgatar o cinema dos anos 1980, que amava o Centro.
HB: Vocês acham que é a primeira vez que o Ronaldo se apaixona por um homem?
Marcelo Caetano: Ricardo acha que o Ronaldo já amou muita gente. Para mim, ele é a figura que está se surpreendendo, talvez por amar um jovem pela primeira vez. Existe algo de novo ali, que o transforma.
Ricardo Teodoro: Acho que é a primeira vez que ele se apaixona por um garoto de 18 anos. O que mexe com a cabeça dele é estar completamente apaixonado, perdido em um lugar vulnerável. É uma relação complexa, como todas. Ronaldo oferece ao Baby o que ele tem: sua realidade como garoto de programa.
João Pedro Mariano: Todo mundo viveu uma paixão assim, que destrói você por dentro. Para mim, as cenas mais lindas são a do voguing e a do boxe, quando dois mundos completamente diferentes se encontram e, de alguma forma, dão certo.

João Pedro Mariano, Marcelo Caetano, Bruna Linzmeyer, Ana Flavia Cavalcanti e Teodoro, no festival de Cannes – Foto: Divulgação
HB: Como foi o processo de pesquisa para retratar os garotos de programa?
João Pedro Mariano: Convivi com muitos michês, frequentando saunas em São Paulo para entender essa vivência e incorporá-la ao meu corpo. Em um primeiro momento, me viam como competição. Quando perceberam que era uma pesquisa, eles abriram a vida para mim, foram muito generosos. É um trabalho como qualquer outro.
Ricardo Teodoro: Há saunas em que garotos de programa são permitidos e há outras que não. Foi interessante… na primeira vez, comecei a entender como é o flerte. Tem uma coisa meio felina, de um olhar que atravessa, de “vou te devorar”.
Marcelo Caetano: Hoje, o cinema retrata a prostituição como um ofício. Não posso julgá-los quando filmo. Penso muito no [cineasta] Sean Baker: ele respeita essas pessoas, isso me toca. Não tenho uma visão abolicionista, não defendo o fim da prostituição. O que a gente tem que fazer é respeitar, cuidar e abrir a escuta.
HB: Como as novas famílias aparecem nesta e em outras histórias?
João Pedro Mariano: Quando cheguei a São Paulo, me senti perdido nessa cidade imensa, sem ninguém. Foi aí que criei minha própria família, com amigos que se tornaram meu porto seguro. Para nós, pessoas LGBTQIAPN+, esses vínculos são essenciais para sobreviver. Não conhecia o elenco de Baby, mas, agora, eles são parte da minha vida. O Ricardo, por exemplo, virou um grande amigo — estamos sempre juntos. Cinema é sobre vínculos. Sem isso, nada acontece.
Marcelo Caetano: Acho que as novas famílias são representadas pelo grupo de voguing, a própria relação do Baby com o Ronaldo… Diversas famílias vão se traçando, em oposição às biológicas, que nem sempre são acolhedoras para pessoas LGBTQIAPN+. O conceito de família está em disputa no Brasil, especialmente diante de grupos conservadores e homofóbicos. Baby e Ronaldo também são uma família: eles compartilham uma parceria econômica, como um casal heterossexual que decide comprar uma casa. No cinema queer, busco retratar personagens em contextos coletivos,o que torna essas novas famílias tão importantes.

Marcelo Caetano – Foto: Divulgação
HB: A música tem um papel central no filme. Como ela ajuda a construir a narrativa?
Marcelo Caetano: É um musical, com pessoas cantando e uma mistura eclética de sons — de Tom Jobim a Dalida e Naná Vasconcelos. Dialoga muito com [o cineasta francês] Jacques Demy nas cores, cenários. É uma grande subversão, porque foi o que eu mais assisti para fazer Baby, mas não é óbvio. A cena final é inspirada em Os Guarda-Chuvas do Amor (1964). A cena dos dois se reencontrando no ônibus vem de Catherine Deneuve encontrando o marido no posto de gasolina. Estou gostando cada vez menos dessa ideia de referência, e mais da ideia de diálogo. Acho que referência tem uma coisa patriarcal. Os diálogos têm que ser cada vez mais estranhos.