Thales Junqueira, diretor de arte do longa “O Agente Secreto” – Foto: Divulgação

Por Paula Jacob

Um dos filmes de destaque das premiações internacionais, “O Agente Secreto” possui entre as características mais marcantes a construção visual. O novo filme de Kleber Mendonça Filho, grande vencedor no Festival de Cannes, acompanha Marcelo (Wagner Moura) em uma saga que mistura suspense policial, thriller psicológico e cultura popular para falar sobre memória – pessoal, histórica, política – em um país atravessado pelos efeitos da Ditadura Militar. Para dar vida a este contexto vibrante em cores e texturas, o diretor de arte Thales Junqueira, colaborador de longa data do cineasta e talento nacional no ofício.

“O ponto de partida da minha pesquisa foi a exposição ‘A Câmera de Jorge Bodanzky’ durante a ditadura brasileira. Estive com Kleber no IMS semanas antes da pré-produção do filme e vimos juntos as fotos de Bodansky, todas inscritas entre 1964 e 1985”, conta Thales em entrevista à Bazaar. Maravilhado com as imagens, muitas delas inéditas no próprio repertório, ele enxergou na riqueza de detalhes uma oportunidade. “Lá estavam os espaços urbanos e seus tensionamentos sociais, as cores e texturas dos anos 70, a pobreza, a violência de um desenvolvimento acelerado, uma paisagem humana riquíssima, com uma câmera apontando para indivíduos cujas histórias, de modo geral, ficam de fora do discurso oficial.”

Outra forte influência foi o filme anterior de Kleber, o sensível documentário “Retratos Fantasmas” (2023), em que costura memória pessoal e social para falar sobre a importância do cinema na formação de um país. “Este filme-irmão de ‘O Agente Secreto’ foi uma fonte importante de pesquisa, da vida recifense da década de 70, das salas de cinema, do centro da cidade”, conta, explicando o quanto a memória tátil do diretor e de sua infância na cidade foram essenciais para dar continuidade a essa investigação. Somam-se à minuciosa pesquisa de Thales os filmes “Iracema – Uma Transa Amazônica” (1975), de Jorge Bodanzky, “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1980) e “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia” (1977), ambos de Hector Babenco. “São obras que, cada uma a seu modo, oferecem registros poderosos daquele Brasil em convulsão.”

Com esse mapa montado, o próximo passo era entender onde as cenas iriam ser gravadas. Junto com Mariana Jacob, Isabela Cunha e pelo próprio Kleber, Thales realizou o processo de pesquisa de locação para descobrir, segundo ele, lugares “esquecidos pela especulação imobiliária, pela modernização e pela arrogância da novidade que vai colocando tudo abaixo”. A surpresa foi perceber diversos espaços que sobreviveram às mudanças que Recife passou desde a década de 70. “Sendo mineiro, mas morando no Recife desde criança, me considero pernambucano. Tenho uma grande intimidade com a cidade e a conheço bem. Mesmo assim, foi preciso que esse filme entrasse na minha vida”, compartilha.

Os cenários construídos do zero foram o posto de gasolina que marca a icônica abertura do filme, o IML e o desembarque do aeroporto da cidade. “Certamente o maior desafio da direção de arte foram as ruas, já profundamente transformadas no decorrer das quase cinco décadas que nos separam de 1977”, explica. “Desde o roteiro, as ruas foram encaradas não como um problema a ser evitado, mas um desafio a ser encarado.” A equipe, então, revestiu fachadas, escondeu ou retirou o que não estava de acordo com a época, abriu inúmeras lojas com suas fachadas e vitrines, adicionou letreiros luminosos, placas, material gráfico… “Um imenso trabalho para recuperarmos a atmosfera dos anos 70.”

Nos ambientes internos, como apartamentos e a vida cotidiana que corre paralela à trama de Marcelo, a pesquisa da figurinista Rita Azevedo se fez essencial. “Ela vasculhou álbuns de família, algo que levei para a direção de arte por me oferecer um panorama valioso dos espaços domésticos, registros íntimos, maneiras de morar, mobiliário e por aí vai.” O resultado é uma direção de arte que salta aos olhos, vibra e sua junto com o filme, num ritmo preciso entre tempos e gestos. Mais curiosidades sobre o processo do excelente trabalho de Thales Junqueira na conversa a seguir:

BAZAAR BRASIL  – A paleta de cor do filme é muito marcante, assim como os outros trabalhos de Kleber Mendonça Filho. Como foi chegar na versão final?

Thales Junqueira – Para mim, era essencial que o filme não parecesse uma representação desbotada do passado, mas algo pulsante, realista, vívido e intenso. Eu queria uma Recife colorida, como de fato foram os anos 1970. Existe no filme uma predileção pelas cores primárias, puras e intensas: o vermelho, o amarelo, o azul. Mas também uma forte presença dos castanhos das madeiras, e também dos cinzas e verdes, tão presentes nas repartições públicas. Há uma tendência recorrente no cinema brasileiro de retratar os anos 1970 sob uma névoa sombria, o que é compreensível, já que o país vivia sob a sombra de uma ditadura militar, mergulhado em censura, perseguições, prisões arbitrárias, torturas, desaparecimentos, privatizações predatórias e um sufocamento geral da vida cultural e política. No entanto, me pareceu mais instigante destacar a tensão entre esse pano de fundo brutal e a explosão multicolorida da visualidade urbana, criando justamente esse contraste entre a dureza da história e a vitalidade do cotidiano. Como diria Dona Sebastiana, “a vida tem muita tristeza, mas tem muita coisa boa também”.

HBB – Considerando as diferentes linhas temporais do filme, como você e sua equipe construíram cenários tão verídicos?

Thales Junqueira – Mariana Kinker, decoradora de cena e produtora de objetos, fez um belo trabalho com sua equipe. Centenas de objetos e móveis produzidos não apenas no Recife, mas também em acervos do Rio de Janeiro e São Paulo. Vários objetos precisaram ser confeccionados, como o Telex que vemos funcionando nos Correios, os orelhões, as bombas de gasolina da Esso que aparecem no posto, uma réplica do projetor de 35mm do Cinema São Luiz, além de alguns móveis para atender referências específicas, como a mesa do apartamento de Geiza, que era a reprodução de uma vendida na Mesbla.

HBB – O figurino de Rita Azevedo é um complemento perfeito da direção de arte, reforçando a estética do filme. O que o trabalho da Rita influenciou o seu, e vice-versa?

Thales Junqueira – Rita é uma parceira antiga, temos muita afinidade. Fizemos juntos vários filmes, como “Aquarius” e “Bacurau”, de Kleber, e “Divino Amor”, de Gabriel Mascaro. Sempre trabalho muito próximo do figurino, pois entendo que faz parte da direção de arte. O figurino é um elemento poderoso em cena, capaz de contar muito sobre os personagens, agregando novos sentidos, cores e texturas para os espaços. Em “O Agente Secreto”, a pesquisa de Rita foi da maior importância para muitas escolhas e decisões que tomei na concepção dos cenários do filme. Desde o início do processo, das primeiras conversas com ela, percebi que, mais uma vez, estamos em total sintonia. Quando essa gramática visual encontra um vocabulário em comum com o figurino, tudo flui bem. Sempre tomo partido nas definições de cada roupa, em cada cena, pois tenho mais familiaridade com como será cada cenário, de modo que posso sugerir ou apontar, dentre as opções, aquilo que pode funcionar melhor em termos de cor na relação com o espaço. Acho o figurino do filme excelente. Naturalista, interessante, cheio de cinema e história. Rita é uma artista incrível.

HBB – Existem elementos surrealistas na história, como o gato de três olhos e a perna cabeluda. Você que já tinha feito a baleia no filme “Sem Coração”, pode contar como funciona desenvolver esses objetos/animais/partes do corpo?

Thales Junqueira – Eu adoro essas digressões surrealistas e a carga simbólica que carregam. A perna cabeluda, que incorpora um medo coletivo durante a ditadura militar, foi feita em látex, a partir de um molde, com os pêlos implantados um a um, além de pintura para conferir um aspecto mais realista. É uma perna já em decomposição, pois é a mesma encontrada dentro de um tubarão (mais surrealismo!). Já o gato de duas caras, que por mais insólito que pareça, de fato existe, a partir de uma condição genética extremamente rara. Ele foi feito em CGI; no set, tínhamos apenas um gato comum que teve uma nova face adicionada na pós-produção, além de mais um olho entre os dois rostos. Na mitologia, esse gato, conhecido como gato de Janus, faz alusão ao deus romano de duas faces – uma voltada para o passado, outra para o futuro. Um bicho interessante que já vem com o apartamento onde se hospeda o protagonista, que tem duas identidades, dois nomes, em um filme que olha ao mesmo tempo para o passado e para o futuro desse passado.

HBB – Sendo um colaborador de longa data de Kleber, como é trabalhar com um diretor tão atento aos detalhes?

Thales Junqueira – “O Agente Secreto” é um filme em que cada detalhe tem uma carga de significados. Isso acontece em todos os filmes dele, que é um artista atento aos espaços. “O Som ao Redor” se passa numa rua de Setúbal, na zona sul do Recife. Já em “Aquarius” e “Bacurau”, a importância do lugar se apresenta desde o título dos filmes. Aqui, mais uma vez, os espaços são filmados de maneira generosa, em lentes abertas, com profundidade de campo; os detalhes são vistos em planos fechados e mesmo em zoom. Kleber é um artista brasileiro singular, tem seu próprio estilo, que é bastante influenciado por um certo cinema americano dos anos 70, um que sabe da importância do espaço.