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Por Paula Jacob

Sirât não é um filme de terror tradicional, mas diria que o seu poder de construir tensão e chocar a audiência com viradas de roteiro pode causar tanto desconforto quanto. O drama apocalíptico de Oliver Laxe começa com imagens de natureza do sul do Marrocos, ecoando sons de música eletrônica, puxando o baixo para um eco cavernoso. Logo ali, pessoas tatuadas, com roupas coloridas e cabelos bagunçados dançam em desarmonia. A felicidade estampada no rosto deles, o contato próximo com as caixas de som e os corpos suados num misto de areia e efeito do sol a pino nos revela uma rave digna de ser vivida na sua máxima potência.

Entre o público assíduo, porém, avistamos duas figuras que destoam da paisagem: Luis e Esteban, pai e filho, caminham entre as barracas espalhando fotos de Mar, filha-irmã desaparecida há cinco meses. Após uma dica de que talvez ela estivesse envolvida com pessoas do universo eletrônico, eles saem em uma incessante busca por ela. Apesar dos esforços, só encontram desamparo e pena nos olhos daqueles que nunca a viram. O dia passa, a noite também, e é só na manhã seguinte que Jade parece sinalizar uma possível conexão com a imagem e sugerir que teria outra festa, atravessando o deserto, dali alguns dias – talvez fosse ideal procurar por lá também.

O plano parecia perfeito até a celebração ser interrompida por militares de um exército não identificado, com um propósito muito menos. Inconformados com tal atitude, o grupo de amigos de Jade foge da fila de vistoria e, encorajado pelo caçula, Luis toma o rumo deles. Mesmo sem conhecimento da região e dirigindo uma minivan zero preparada para os desafios de terrenos do caminho, esse pai desolado segue viagem e cria laços com os nem- -tão-jovens-assim amigos de rave. De repente, escutam na rádio o anúncio de uma Terceira Guerra Mundial – “e já não estávamos vivendo uma”, refuta um deles.

A singela peregrinação nas paisagens áridas, com alguns obstáculos físicos facilmente superados, começa a se tornar o começo de um pesadelo sem fim. Travessia de rio? Tranquila. Cachorrinha com intoxicação alimentar? Um sustinho, mas ok. Caixa de som com falha no sistema? Resolvido. As pequenas coisas desse cotidiano agora marcado por barracas no meio do nada e restrição alimentar se tornam banais após a primeira tragédia que marca o ponto de virada da história, que, tal qual música eletrônica, muda de cenário tão rápido quanto uma virada de som. Para não ficarem tão expostos às possíveis ocupações militares, eles decidem trilhar montanhas rochosas e encarar a vertigem da paisagem íngreme.

Nesse ponto de Sirât, nada parece ter lógica. A filha desaparecida fica em segundo, terceiro plano. À medida que se perdem, se emaranham na amplitude do horizonte, as coisas se tornam grotescas, surreais, como um sonho esquisito em uma noite febril. As tragédias que se empilham parecem reais demais para serem verdade, transformando a narrativa em um transe de sofrimento encadeado pela sequência aleatória de acontecimentos – e pelo embalo do design de som em desassossego. Quanto mais o tempo passa no deserto inebriante, mais suspense psicológico Oliver Laxe acrescenta à narrativa. São metáforas sobre um tal fim de mundo nem tão distante assim que se dissipam para virarem o próprio ato, cru, sem aviso prévio. Da ponta da cadeira do cinema, é possível sentir um fio cortante sob os pés: permanecer não parece uma boa ideia, muito menos se deixar levar.